segunda-feira, 21 de junho de 2021

A Sarça Ardente - 84

Francisco Díaz de León, Canción de verano, Aguascalientes, 1955
O dia desenha uma elipse
ao envolver
de luz
o rumor das ruas.

Desbaratada, a sombra
esconde-se
sob a copa
verde das tílias.

Quem chega à janela
pensa ver
o mar
na cinza do horizonte.

Depois, tudo se funde –
a luz, a sombra,
as tílias –
o solstício de Verão.

Junho de 2021

 

sábado, 19 de junho de 2021

Biografias 20. A esperança que a move

Irving Penn, Vogue cover, 1950
Foi um longo e doloroso exercício. A partir do momento em que a beleza começou a decrescer, resolveu apagar-se. Como não era dada a gestos teatrais, recusou a ideia de suicídio. Concentrou-se apenas no seu corpo, meditando continuamente na invisibilidade. A primeira vitória foi alcançada quando descobriu a palidez que se apoosava dela. A segunda veio ao notar como estava translúcida. Se o corpo de tornasse transparente, a biografia haveria de desaparecer, pensou. Ainda é essa a esperança que a move.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

O sal do silêncio (62)

Andreas Feininger, Silhouette of the Statue of Liberty lit only by her torch, 1943
O mais intrigante dos mistérios humanos é o da liberdade. Como é que num universo regido pela estrita determinação emergiu um ser dotado de vontade livre? Nunca deixa de espantar como na escuridão silenciosa da necessidade emergiu o sal luminoso da liberdade.

sábado, 12 de junho de 2021

Meditação Breve (161) Auto-retrato

Florence Henri, Self portrait, 1928

Auto-retratar-se é pôr-se à distância, afastar-se e alienar-se de si mesmo. Pensa-se, por vezes, que o exercício do auto-retrato é um modo de conhecimento de si. Essa crença, porém, não passa de uma ilusão da consciência reflexiva. Procura-se a ignorância de si mesmo, pois o retrato não é a própria pessoa, nem dá dela a sua realidade. Pelo contrário, aniquila-lhe o corpo, prende-a no espaço, retira-a da duração e esconde-lhe o espírito. 

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Diálogos morais 61. Um cavalheiro de indústria

Modesto Ciruelos González, Abstracción, 1975
- Olha, estás a ver o que se passa?
- Não estou e não quero ver.
- Apesar de tudo, nunca deixas de ser desagradável.
- De tudo, o quê?
- Do carro, do casaco, do dinheiro, enfim.
- Não te agrada? Podes despir o casaco e ires a pé.
- Tanto esforço e nem um vislumbre de cavalheirismo.
- E depois?
- Um pouco de gentileza e o mundo seria melhor.
- E achas que eu estaria aqui sentado, se fosse gentil?
- Nunca deixaste de ser um cavalheiro de indústria.

terça-feira, 8 de junho de 2021

A Sarça Ardente - 83

Edward Burne Jones, El Lamento, 1866
A música dos dias luminosos
ondula tocada
pelo vento.

Os acordes tremem,
são folhas
de árvores cobertas

pelo ouro nascido
da hesitação
entre som e silêncio.

Junho de 2021

domingo, 6 de junho de 2021

Micronarrativa (53) Encostado à parede

Dorothea Lange, Against the Wall, San Francisco, 1934
Exausto, virou o carro-de-mão e encostou-se à parede. Estou derrotado, disse. Também eu luto diariamente com o anjo. Também me deram o nome de Jacob, mas não foi a minha coxa tocada pelo adversário, foi todo o corpo. Por isso, não recebo a bênção, nem tomarei o nome de Israel, nem de mim sairá uma nação. Serei um grão de areia no deserto. O anjo que me calhou não era o anjo de Deus, mas aquele que se apodera dos homens para os encostar à parede e perdê-los.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Biografias 19. A mulher da máscara

Man Ray, Noire et Blanche (Black and White), 1926

Foi uma longa e vagarosa viagem. Não é fácil vir da periferia e chegar ao centro de si mesmo. Exausta, ela parece dormir, mas não é verdade. Apenas pensa como foi difícil arrancar a máscara que sempre trouxera para deixar que o rosto, o seu próprio rosto, se manifestasse e se abrisse para os olhos de quem o quisesse ver. Não há metamorfose, medita, que não deixe à porta da morte e da ressurreição.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Histórias sem nexo 26. Irina e Irene

Vincent Van Gogh, Duas mulheres no bosque, 1882
Irra, Irina, não ias à igreja e imaginavas hibernar em ímpia hierarquia ou em impávido império, ó infeliz idólatra. A Irene, impoluta irmã, imiscuiu-se na hipertrofia da irresponsável ilusão e, com ímpeto, idealizou o isco para te impedir a impiedade, a ida hílare para o hiante inferno. 

segunda-feira, 31 de maio de 2021

O sal do silêncio (61)

Marc Chagall, The Flying Carriage, 1913

A fantasia nasce por dentro do silêncio. Quando o espírito detém o torvelinho dos reflexos da vida quotidiana e deixa a mente apaziguar-se, então as mil imagens recebidas ao acaso começam a estabelecer estranhas relações, até que novas realidades, nascidas do secreto prazer da hibridação e da metamorfose, se tornam o sal da vida.

sábado, 29 de maio de 2021

A Sarça Ardente - 82

Albert Bloch, Mountain, 1916
Maio é um Verão indeciso,
a escarpa benévola
por onde subo
a montanha para perscrutar
a linha do horizonte.

Chegado ao cimo, olho
a flora selvagem,
caminho ao acaso e colho
os frutos silvestres
do silêncio e da solidão.

Maio de 2021

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Haikai do Viandante (412)

Rolando Sá Nogueira, Chuva, 1960
Como a fria névoa
a chuva desce dos céus.
Dádiva dos deuses.



terça-feira, 25 de maio de 2021

Impressões 81. A presença encarnada

André Kertész, Soldier writing, Gorz, Austria (now Italy), 1915
Nesse acto de escrever uma carta, suspende-se a única realidade que assombra um soldado em tempo de guerra. Nesta, a morte não é uma abstracção que por vezes toma corpo em alguém conhecido. Ela é a presença encarnada de cada hora.

domingo, 23 de maio de 2021

Meditação Breve (160) O tempo em fuga

Paul Strand, Bombed Church, Hoste, Moselle, France, 1950
Sempre que pensam na imortalidade, os homens tentam, não sem desespero, matar o tempo, como se o maior inimigo dessa persistência que nunca acabaria fosse o saltitar inexorável dos ponteiros do relógio. Sucedem-se os ataques. Os atentados não têm fim. Os danos colaterais amontoam-se. O tempo, esse nunca pára, faz da fuga a arte da existência.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

O sal do silêncio (60)

Maria Helena Vieira da Silva, Casas, 1957

Casas são segredos a crescer entre os murmúrios da rua, são enigmas onde se escondem os ardores da noite, são mistérios que se abrem na luz e na sombra. Casas são o aroma do sal perdido no fogo do silêncio.
 

quarta-feira, 19 de maio de 2021

A Sarça Ardente - 81

Paul Cézanne - As grandes banhistas (1900-1905)
De súbito, um som de água
fende o silêncio,
o coração estremece,
o vento dança nas folhas das tílias.

A Primavera abre-se ao fulgor,
os dias tocados pela aura
do sol
crescem por dentro da alma.

Oiço um violino e nele escuto
o vento, o sol
o cântico de alegria
das almas ébrias da madrugada. 

Maio de 2021

segunda-feira, 17 de maio de 2021

Haikai do Viandante (411)

Max Baur, Im Nebel, 1930
 Névoa sobre névoa,
o mistério da manhã
nas águas do rio.

sábado, 15 de maio de 2021

A fronteira

Eugene Robert Richee, Betty Grable, 1930s
Da única coisa de que tenho a certeza é do seu nome. Encontrei-a sentada diante de um espelho. Entre ambos parecia haver uma estranha relação. Não aquela que, por preconceito e irreflexão, atribuímos às mulheres. Parecia antes uma barreira que ela tentava passar, como se quisesse entrar pelo vidro. Precisa de ajuda? Perguntei-lhe. Olhou-me e sorriu, mas não disse nada. Parecia deslocada. Não force o espelho com o corpo, ele pode partir-se. Disse-lhe. Deu-me uma resposta inusitada. As fronteiras servem para ser forçadas, quero ir para a casa. Posso levá-la. Como se chama? Não sabe o meu nome? Quando lhe ia responder, entrou por dentro do espelho e desapareceu. Claro que sabia o seu nome. Não me atrevi a segui-la.

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Meditação Breve (159) Do arrependimento à inocência

Imogen Cunningham, Eve Repentant, 1910
O arrependimento insere-se, na cultura judaico-cristã que dá forma ao mundo ocidental, numa dialéctica de dissolução dos factos. Arrepender-se de algo que foi feito - isto é, tornado um facto -  é o primeiro passo para que uma outra figura espiritual - espiritual e não apenas moral - se manifeste, a figura do perdão. Do ponto de vista humano, o perdão é fazer como se o que foi feito não o tivesse sido. O perdão divino será muito mais radical. Será o dissolver o facto, fazer com o que foi feito não o tenha sido. O perdão humano inocenta, o divino devolve a inocência.

terça-feira, 11 de maio de 2021

Impressões 80. Uma estranha realidade

Júlio Pomar, Campinos, 1963

O touro e o cavalo nunca deixam de exercer um estranho fascínio sobre o espírito dos homens. Talvez a leveza de um e força do outro sejam o segredo dessa atracção. Tudo isso se intensifica quando, numa largada, os campinos, presos às selas, conduzem uma manada de touros. Olha-se e não se vê nada mais que uma onda de poeira e de vultos, como se homens, terra e animais não fossem senão uma única realidade tomada pela vertigem do infinito e pelo desejo do absoluto.

domingo, 9 de maio de 2021

A Sarça Ardente - 80

Jackson Pollock, White light, 1954
Deixo o silêncio cair sobre o dia,
ergo-o como uma vela
no altar.

Tudo se ilumina na tarde,
as ervas presas ao chão,
os pássaros perdidos nos céus.

Uma voz canta na planície,
entra na casa onde
o silêncio se cala feito luz e sombra.

Maio de 2021

sexta-feira, 7 de maio de 2021

Haikai do Viandante (410)

Edward Weston, Dunes, Oceano, 1936

Desertos de areia
são sonhos nunca sonhados,
são mares de mágoa.
 

terça-feira, 4 de maio de 2021

Meditação Breve (158) As pequenas vinganças

André Kertész, Between Paris and Deauville, 1927

O cómico nasce muitas vezes do entrelaçamento dos tempos. Quando o que passou e se tornou obsoleto é a solução para aquilo que o veio substituir, não se pode deixar de sorrir. As pequenas vinganças nunca deixam de ter qualquer coisa de sarcástico.

domingo, 2 de maio de 2021

Biografias 18. A serva do senhor

Nobuyoshi Araki, untitled, not dated

O súbito desejo da servidão. O meu corpo ofereceu-se às cordas que o submetem. O desejo do senhor, porém, faz dele escravo da sua escrava, torna-o submisso ao fogo devorador que dorme nos meus olhos, na minha boca, no meu ventre. Presa, sou a imperatriz e no meu império está toda a minha liberdade.

sexta-feira, 30 de abril de 2021

O sal do silêncio (59)

Francesca Woodman, Untitled, Providence, Rhode Island, 1975
Primeiro chega o abandono, depois a realidade vai perdendo aquilo que a liga, as peças saem dos encaixes, anuncia-se a dissolução de tudo o que foi, até que reste apenas o silêncio e o sal que, desprendendo-se dele, salga com leveza a memória, para que ela se afaste do insuportável e seja recordação cada vez mais longínqua, cada vez mais feliz.

quarta-feira, 28 de abril de 2021

A Sarça Ardente - 79

António Carneiro, sem título, 1915

A claridade vem, viaja
sobre o bosque.
Pássaro de luz,
fuga ao abismo
da noite.

O coração saúda-a.
Graça derramada
para iluminar
de súbito
a sombra da Terra.

Abril de 2021

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Haikai do Viandante (409)

Emérico Nunes, Neve sobre o cais (Paris), 1909

Sobre o cais, a neve.
Olhos param deslumbrados,
esperam sinais.

sábado, 24 de abril de 2021

Histórias sem nexo 25. Urgências, usurpações e usucapião

Júlio dos Reis Pereira, Tarde de Festa, 1925
Urgência, um urso sem humor urina nas urtigas. Úrsula e Urraca urgiam em Unhais e um urubu uivava na Urqueira. Hum! Hum! Ululam os últimos Huguenotes. Humildade, humildade, Ursulina. Humaniza-te. Na hulheira, Humberto usurpa a hulha. Usucapião, usucapião, urrou utópico o Hugo. Uau, ufanou-se a Umbelina.

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Biografias 17. Um pai aos olhos do filho

 Wolfgang Suschitzky, Trafalgar Square, London, 1953
Um pai cresce nos olhos do filho. Como um mágico, tira da cartola invisível os pombos visíveis. O filho deixa-se tomar pelo espanto dos animais a voltear por cima deles e pensa que ninguém no mundo a não ser o pai conseguiria tal façanha. O pai alimenta-se do olhar do filho.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Meditação Breve (157) Encarnação

Ernst Haas, Herbert Von Karajan, Salzburg, 1978

Por vezes, embora nem sempre isso aconteça, a arte exige que o artista se desaposse de si. A entrega deverá ser de tal ordem que a pessoa desaparece de si mesma, para que o espírito que se manifesta na arte encarne e se torne realidade pura. Talvez a grande arte não seja outra coisa senão um exercício de encarnação.