segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (333)

333. TODAS AS COISAS QUE ESQUECEMOS JAZEM NO FUNDO

Todas as coisas que esquecemos jazem no fundo
que há no centro do coração, pequeno baluarte
abandonado às intempéries, ao vento ocioso
que do norte chega, inunda ruas e traça mapas
de desespero nos teus olhos cansados de solidão.
Por vezes, há tumultos nas ruas ornadas de silêncio,
homens correm no desvario e ouvem-se gritos,
palavras repetidas como se a língua minguasse
e nada mais houvesse do que aqueles sons.

Pegas no que é teu e leva-lo para dentro de ti,
é agora um segredo, matéria vegetal para combustão,
memória que busca no futuro o rasto do passado.
Estremeces, se te olho deste lado do mundo,
e as tuas mãos tornam-se imprecisas, sombras delidas,
uma chaga tardia a arder sob o império da noite.
Depois, olhas o céu e contas angústias e desencantos,
tortuosas estrelas com que inventas constelações,
uma leitura da vida, o breve rosário da ressurreição.

Quando chega o mês de setembro e o verão moribundo
regurgita de vida, começam contagens e balanços,
exercício inútil de um deve e haver que corrói a alma,
a inunda de ferrugem e a abre para a secura do jardim.
A falta de água trouxe a morte à pequena flora,
inscreveu, no solo bravio, uma poeira persistente e
infinita, o traço de um desejo que se extraviou no calor.
Sentas-te perante o tumulto das ruas e ouves cantar os ralos,
o imperativo da vida num campo semeado pela morte.

domingo, 19 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (332)

332. SOMOS FLORES TARDIAS DE UM JARDIM EXAUSTO

Somos flores tardias de um jardim exausto
e não há, nas terras em redor, jardineiro
que de nós, nestes dias de calor, venha cuidar.
O último vinha, pé ante pé, negra a sotaina,
regador vazio, sacho e romba tesoura de poda.
Levou-o o vento ou um anjo que por aqui houvesse,
levou-o a pressa da vida, um incêndio no matagal,
levou-o o esquecimento, um fantasma, a promessa
de um céu puro sobre praia de areia e azul.

Somos flores tardias de um mundo acabado,
viemos no acaso da noite e arpoámos o barco
entre rochas e cascos velhos apodrecidos.
Um tempo houve em que as flores vinham
da Grécia, de Roma, mesmo de Jerusalém.
Frágeis e vigorosas  violetas de tempos rudes,
pequenas promessas de seda, pontes entre
um passado nunca esquecido e a luz fugaz
a brilhar no horizonte que seria o futuro.

Somos flores tardias de um tempo consumado.
São outros os jardins e diferentes as flores,
não lhes faltará o zelo do jardineiro,
nem terra nova ou estação propícia ao plantio.
Não tragam água sobre estas pétalas cansadas,
nem deixem o sol vir sobre o caule estiolado.
Tudo se nos tornou já um sonho alheio e,
na multidão que passa, não há um rosto
que sorria ao lançar os olhos pela terra vazia.

sábado, 18 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (331)

331.  A DOR É UM ORIFÍCIO NA TARDE PERFURADA

A dor é um orifício na tarde perfurada,
o prato da balança em que a vida se pesa,
sinal enfurecido de um corpo consigo
desavindo. Fecho os olhos ao sofrimento
e espero o duro combate que a vida impõe,
a arena vazia de onde o animal se retirou.

A dor é apenas a véspera da consciência,
a flor de sombra que anuncia a luz
e prepara o mundo para um destino de cristal,
pequena transparência nos filamentos rochosos,
o velho álbum de fotografias, passado ridículo
de um futuro de areia em terra de aluvião.

Cheiro no tempo a dor que vem
e não é dor de parto. As furtivas auroras
cansaram-se e, sem razão, esconderam-se
na fronteira que une o dia e a noite,
abolindo as longas horas de negociação,
todos os crepúsculos que no poema havia.

Olho a mão cruel que me estendes
e todo o corpo treme na dádiva esperada.
Aguardo o inverno e os dias agrestes,
a casa batida pela fúria do vento.
Todas as coisas inúteis que um dia amei
são rasto de dor, do breve prazer irradiou.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (330)

330. DE TODOS OS MESTRES QUE A VIDA TROUXE

De todos os mestres que a vida trouxe
o maior tem por nome silêncio,
um exercício de contenção na vacuidade
do mundo, a casa fria onde habitamos.
Dele aprendemos o essencial,
a cor solícita da primeira madrugada,
o atear do fogo com a caruma dos pinheiros,
a respiração da mulher que mais amamos.

Se chega a noite e lemos à luz do candeeiro,
o silêncio é a música que retine no horizonte,
o poder que habita cada uma das palavras,
o rei que distribui felicidade pelos súbditos.
Ao mergulhar nele, o corpo torna-se mais leve,
suspende a gravidade e ergue-se aos céus,
pássaro de penas translúcidas,
um cristal de fogo sobre a terra em transe.

E na mistura que todo o amor consigo traz,
amo em ti o silêncio que arde no corpo,
as palavras suspensas se te toco,
a plácida brancura a vibrar na pele.
Aprendi, ó mais querido dos mestres, todos
os segredos, os que me quiseste revelar,
para lá da fuligem que escurece a terra
e das ilusões com que desejo enganar-me.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (329)

329. SÃO HORAS DE ALMOÇO E O MAR BALOIÇA

São horas de almoço e o mar baloiça
na minha ausência de fome,
pequenas ondas murmuram na areia,
o vento soprado pelo voo das gaivotas.
Penso no livro das mutações,
não nesse que alimenta comércio e ilusão
mas naquele que vi num cemitério
e tinha o nome dos mortos escrito a negro,
um rol sem fim de estéreis surpresas
e súbitas mudanças no estado civil.

Às vezes penso nas torres do castelo,
lugares inóspitos de segredos inconfessáveis,
motivo para erguer o pano da muralha,
o velho exercício de traçar fronteiras,
distinguir os de fora e os de dentro,
aqueles a quem amamos e por quem morremos
e os que merecem o ódio e a ruína.
Abrimos a boca no espanto da arquitectura
e não sabemos a vileza do nosso coração,
a pedra de fogo a rugir na história.

Conto as marés, as altas e as baixas,
conto os barcos que se avistam da fortaleza,
conto os dias que passam sem consolo.
As crianças coleccionam seixos e conchas
e cavam buracos na areia, breves oceanos
perante a desmesura do grande mar,
a esperança de um mundo à sua medida.
A configuração da praia muda todos os anos,
pensei, enquanto as vagas desfaziam rochas,
súbitas mutações no livro da memória.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (328)

328. AS HORAS BRANCAS DO SOFRIMENTO CHEGAM

As horas brancas do sofrimento chegam,
névoa azul sobre o mar, um barco arpoado,
cântico da carne na desolação do dia.
Dissipada esperança cai pela floresta,
terra antiga, pobre condado da infância.
Quantas vezes peguei na tua mão,
como se esperasse uma carta,
o segredo de um nome ou a sílaba
onde se escondia o ventre desse amor.

A vida esmorece, torna-se inabitável,
um castelo em ruínas na vila abandonada.
Os frutos, se os havia, eram ácidos,
sobre o açúcar traziam o tom do limão,
e logo amadureciam na secura da tarde.
Vislumbro hoje esses dias de glória,
a casa aberta para o pequeno jardim,
as tuas mãos a trabalhar a terra,
as roseiras enxertadas no final do dia.

Um animal selvagem habitava a casa,
crescia na noite e adormecia na aurora.
Quando a porta se abria, apenas uma sombra,
o sussurro do mundo a cantar vagaroso,
a voz que amei no prelúdio da tarde.
Batem as horas no relógio de parede
e o coração estremece na distância.
Os dias estão ficar mais curtos, disseste,
e os meus olhos declinaram com o sol.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (327)

327. O MAR ENCAPELADO PELO VENTO DE SUDOESTE

O mar encapelado pelo vento de sudoeste,
exércitos de gaivotas por terra,
as pegadas na areia húmida
e um céu de tempestade sobre os ombros.
De quantas coisas terei de me esquecer
para que a verdade brilhe
e a vida nos esmague com o peso da morte?

Estás sentado e o telefone toca
e não sabes o que vem naquele toque,
o que te dirá a voz que escutas.
Ouves e sentes o cheiro dos crisântemos,
os sinos a dobrarem na lonjura da aldeia.
A morte convoca-te para o seu triunfo
e o sentido que tudo tinha torna-se irrisão,
um campo de cinzas e cactos em terra seca.

Sento-me perante as ondas
e sobre mim cai uma chuva fina,
água vinda de um céu incompreensível.
Tão estranho desígnio o de não haver
desígnios, apenas as ondas que vão e vêm,
as gaivotas por terra e uma tempestade de areia.
Ao longe, as sirenes uivam na noite
e o coração cala-se sob a sentença dos céus.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (326)

326. UM VEADO AZUL, ESCREVEU GEORG TRAKL

Um veado azul, escreveu Georg Trakl,
sangra baixinho no mato de espinhos,
mas aqui, na frondosa noite, não há sangue,
nem os veados vestem de azul,
apenas os espinhos crescem sem alvo,
ameaça difusa iluminada pela lanterna do medo,
o teu grito silenciado na colina.

Pego na urze e arrasto-a para o fogo,
oiço na secura crepitar a alma do mundo,
as faúlhas soltam-se e inclinam-se
para o mato, ameaçam Sodoma e Gomorra,
riscam um mapa de desolação sobre a mesa,
onde te sentas e me escutas.
Sempre és um príncipe? Perguntas,
e no meu silêncio vês consentimento,
a alegria breve de um encontro sem feridas.

Antigamente, chegado o verão,
tomava banho no grande tanque de rega,
a água fria, o corpo despido no zumbir da tarde,
e o solitário silêncio interrompido
por uma ave, o restolhar do vento na folhagem,
a recordação de algum amor sem futuro.
Cansam-me estas pendências da memória,
as promessas que fiz e nunca cumpri,
o rugir das varejeiras no campo.
Cansa-me o desejo de ser um veado azul
ou o pobre príncipe que nunca deixou de sangrar.

domingo, 12 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (325)

325. AS PORTAS QUE SE ABREM E FECHAM

As portas que se abrem e fecham,
a colina rasgada pelos últimos fogos,
a paisagem esquiva na janela do quarto.
Ficaria semanas a enumerar sensações,
a desmembrar imagens que me chegam,
como se uma verdade fosse possível
ou um novo deus se revelasse.

Desço as escadas em direcção à rua
e esqueço o exercício de separar estações.
Espero apenas que venha o inverno
e o tempo de exílio,
a feliz ventura da pátria sonegada.

Aqueles que desejam a graça
sentam-se ao meu lado no chão húmido,
olham os céus e perscrutam as nuvens.
O silêncio cresce no ventre do verão,
um silêncio abrasador na quietude da tarde,
império de sombra no coração da luz.

Os que esperam o êxtase retiram-se,
partem para a reclusão da floresta,
para o sigilo que em si a natureza esconde.
Fico preso no cristal da solidão,
na expectativa de que chegues ao arrefecer
e tragas na brancura das mãos
as horas maduras do meu breve amor.

sábado, 11 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (324)

324. O PERDIDO PODER DE TE RESSUSCITAR

O perdido poder de te ressuscitar,
de trazer à vida o murmúrio dessa voz,
o calor suspenso sobre a casa.
Começado o declínio, nada nos salva,
o barco corre sonâmbulo pelo rio
e a foz, apenas o nada que te aguarda.

Desesperam os que amam a beleza,
essa lúcida inclinação para a loucura,
pois sempre que a respiração se suspende,
ela retoma o ritmo, o hábito lho deu.
Tão frágeis os nossos juízos,
que tomamos por belo aquilo que passa.

Na casa recusamos ver o salitre
e na face, aquela que mais amamos,
esquecemos o ruminar das horas.
Pobres poderes são a nossa herança:
um riso, a flor da camélia, uma noite,
a breve alegria do esquecimento.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Haikai do Viandante (87)

Salvador Dali - Vista de Cadaqués desde el Mont Pani (1921)

céu, sol e luar
cobrem o abrigo sereno
da luz sobre o mar

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Da pobreza

Giotto di Bondone - Alegoria da Pobreza (1316-1319)

A pobreza não é a mesma coisa do que a miséria. Esta tem como núcleo central  abjecção. A pobreza deve ser entendida como um desapossamento de si, um abandonar-se a si mesmo, um não querer centrar em si o que quer que seja. A essência da pobreza é a dignidade, não aquela daquele que decidiu tornar-se pobre, mas a dignidade que essa pobreza permite manifestar.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Poemas do Viandante (323)

323. NÃO HÁ UMA HISTÓRIA VIVA DA MISÉRIA

Não há uma história viva da miséria.
Os miseráveis limitam-se à sua fronteira,
a pura sombra pelo chão,
o cântico sóbrio com que suportam o destino.
Estão ali, mas são invisíveis,
sem mãos ou braços,
a luz não se demora naqueles corpos,
segue o caminho luminoso,
sem deixar rasto, sombra, leve indício.

Não basta a pobreza pelas ruas
ou a devoção austera e contida no templo.
O mundo arfa numa sede de penúria,
de casas ardidas e cidades cariadas.
A miséria veio no espírito da terra,
a pura abjecção da graça em declínio,
o sórdido desenho do coração dos homens.

Não há uma história do que não se vê,
nem ciência daquilo que não se ama,
não há uma pegada no caminho
ou um eco a saltar sobre a montanha.
De nada vale ler livros e tratados,
espantar dos dias o sagrado ócio,
ir mundo fora recolher testemunho.
A miséria é o invisível daquilo que vemos,
sangue que pulsa na vida sem porquê.