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domingo, 29 de novembro de 2020

Micronarrativa (44) A incerteza

Frank Eugene, Gustel Königer, 1909

O que a esperava não sabia, apenas olhava o horizonte e aguardava o que dali haveria de chegar. Na tranquilidade do rosto, pontuava a expectativa e no coração desenhava-se uma estranha contabilidade. Seria o bem ou o mal que encontraria. Com o corpo preso na incerteza, deu os primeiros passos e, sob um sol intenso, fez-se ao caminho. Ao longe, alguma coisa a aguardava.

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Micronarrativa (43) O sonhador

José de Almada Negreiros, A sesta, 1939

Alguém, não se sabe onde, sonha-os exaustos pelos ritos nupciais, cansados da corveia devida ao deus do amor. Sonha-os dormindo, o sonhador e os sonhados, e estes não são mais que vestígios perdidos no campo tumultuoso daquele que, submetido ao império do sono, lavra o campo vazio da solidão.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Micronarrativa (42) Os músicos

Jorge Vieira, Sem título (músicos), c. 1957
Era uma aldeia silenciosa e no silêncio nascia uma violência sobre os dias. Exaustos pela maldade, fizeram uma festa, a primeira da aldeia. Vieram músicos e tocaram. A maldade apagou-se nos corações e os aldeões, gratos a quem os libertara do mal, transformaram os músicos em estátuas para eternizar o som salvador.
 

sábado, 10 de outubro de 2020

Micronarrativa (41) A queda de uma rosa

Jorge Apperley, Una bailarina del antiguo Egipto, 1915-16

Sobre a cabeça, levantou o braço direito e, ao esticar o esquerdo, abriu os dedos de onde caiu uma rosa. Ao tocar o chão, as pétalas soltaram-se, por instantes hesitaram, mas logo se ergueram e como um bando de aves voaram, tingindo o céu com uma luz de nácar.
 

sábado, 26 de setembro de 2020

Micronarrativa (40) O caminho da vida

Fernando Taborda, Estrada da vida, 1954
De súbito, descobriu aquilo a que todos chamavam o caminho da vida. Entrou nele e caminhou sem parar. Subia e descia, para tornar a subir e a descer. Rodava continuamente e nem quando sentia que tinha a cabeça para baixo e os pés para o ar se deixava tentar pelo desejo de abandonar a senda que tomara. Afinal, esse era o seu caminho e a sua vida.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Micronarrativa (39) O fantasma carbonizado

Philip Jones Griffith, Quang Ngai, Civilian victim, South Vietnam, 1967
Estava no lugar errado na mais imprópria das horas. A loucura desmedida dos homens, um clarão infernal descido dos céus, e tornei-me um fantasma carbonizado, alguém que perdeu o rosto e cujos olhos entraram na mais negra das noites. O meu nome? Eu não tenho nome.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Micronarrativa (38) Uma mulher de autoridade

Gjon Mili, Double exposure of models wearing hat with heavy face veil, 1946
Subitamente, o rosto começou a desdobrar-se. Primeiro, apenas uma leve impressão, uma ilusão de óptica, dir-se-ia. Depois, uma pequena nuvem ganhou contornos ainda mal definidos, sugerindo olhos, boca, nariz. Por fim, um novo rosto juntou-se ao primeiro. Se as conversas lhe agradavam usava o original. Se a contrariavam, era com o novo que respondia ameaçadora. Nunca deixou de ser obedecida.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

Micronarrativa (37) O peso da graça

Minya Diez-Dührkoop, Dancer Clotilde von Derp-Sacharoff, 1910
Nela tinham pousado todos os encantos que as Graças poderiam derramar. O seu peso, porém, era tão excessivo que uma sombra caiu sobre ela. Quem a olhasse nos olhos sentia neles uma dor inconsolável, um pedido para que a libertassem da dádiva divina.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Micronarrativa (36) Amor trágico

Odilon Redon, Dos amantes en una barca, 1902
Foi um amor trágico, não porque os amantes morreram em nome de uma paixão impossível, mas porque fugiram para longe da convenção, consumaram o seu amor e logo descobriram o cansaço um do outro que nunca mais os abandonou.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Micronarrativa (35) O desejo

Emil Otto Hoppé, Seated Woman in Profile, 1928
Nem sempre o desejo se manifesta em turbilhão. Sentada, uma ânsia silenciosa trabalha dentro dela. Toma-lhe conta do corpo, tinge-lhe a alma e torna-se espírito. Ela apenas espera sentada e olha ao longe, mas nesse olhar mistura-se já o incêndio e o fogo que o apagará.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Micronarrativa (34) Na fronteira

Ara Güler, Children playing among the tombstones in the Seyhülislam Yahya Efendi cemetery at Ortaköy, Turkey, 1985
Entre lápides e túmulos, a vida é mais sossegada. Na cidade dos mortos, crianças vivas brincam nesse limiar que divide dois mundos. Quem está na fronteira, vê-os a ambos e caminha para cá e para lá sem passaporte nem autorização especial.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Micronarrativa (33) Uma sombra

Constantine Manos, Daytona Beach, Florida, 1997
Chegou tarde, apesar de vir de bicicleta. Quando se aproximou da cabine de telefone pública, já alguém tinha tinha atendido a chamada que há tanto tempo esperava. Uns segundos, pensou, e foi o suficiente para perder a minha oportunidade. Não passo de uma sombra.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

Micronarrativa (32) O sonho da modelo

Carl Mydans, Art students at the painting class. Texas, 1939
Era uma modelo muito requisitado nas escolas de pintura. Pousava não por necessidade ou vocação. Alimentava, não sem teimosia, uma secreta esperança. Um dia, depois de acabar a última sessão, ao levantar-se viu saírem vivas dos quadros réplicas suas. Eu sabia, gritou. Um dia haveriam de vir comigo.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Micronarrativa (31) A verdade

Edward Weston, Meraux Plantation House, Louisiana, 1941
Durante muito tempo foi um lugar vibrante. As gerações sucediam-se, presas à certeza da continuidade. A casa era renovada ao gosto de cada época, sem que perdesse a sua unidade, a luz que a guiava. O último membro da família, porém, morreu sem filhos nem herdeiros. A estirpe cansou-se e a casa encontrou a sua verdade no abandono e na ruína.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Micronarrativa (30) Perda

Constantine Manos, The Boston Symphony Orchestra. Boston, Massachusetts, 1958
Subitamente, ela voltou-se e os meus olhos foram tomados por uma sombra que ainda hoje me atormenta. O seu corpo, o seu rosto, os seus olhos, tudo o que ela era dançou diante de mim e, num turbilhão, foi-se dissolvendo até nada restar. Perdi o grande amor da minha vida na hora em que o encontrei.

sábado, 28 de dezembro de 2019

Micronarrativa (29) O crime da rua esquecida

Josef Sudek, Forgotten street, 1930
Ali era o lugar onde o crime deveria acontecer. Rua de casas sombrias com janelas escuras, de onde se espera ver assomar gente taciturna, sobrolho carregado, indisposta com o mundo. Quando chegou a hora, assassino e vítima esqueceram-se do lugar que os esperava e a bala que deveria abater o condenado nunca chegou a sair do revólver do carrasco. 

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

Micronarrativa (28) A mulher da sombra

Eugene Robert Richee, Marlene Dietrich, not dated
A sombra nascia-lhe dentro dos olhos e saía num fluir lento para o mundo. As luzes apagavam-se e não havia quem não quisesse ser iluminado pela noite que naquele olhar nascia. Quando ela cerrava as pálpebras, o dia acordava e a noite escondia-se no ermo do seu coração.

terça-feira, 26 de novembro de 2019

Micronarrativa (27) Mulher sentada

Emil Otto Hoppé, Seated Woman in Profile, 1928
A espera tranquila do que há-de vir. Sentada, põe no futuro toda a sua expectativa, sem saber o que lhe está destinado. O negro com que se veste é um indício do que passou, mas toda a dor se abre para o desejo de um novo júbilo, enquanto o coração, em segredo, percorre a via sacra que vai da elegia à ode triunfal.

sábado, 19 de outubro de 2019

Micronarrativa (26) Fim

Lee Miller, Woman with hand on head, 1932
Agora tudo terminou. Dantes, para compensar a perda, recorria a um adágio despropositado. Só termina o que nunca começou. Usava-o para me iludir, para negar a realidade. Os anos passaram e os aforismos não conseguem já ocultar a verdade. Partiu e eu não posso negar nem o começo nem o fim. Dói-me a cabeça. Talvez a realidade seja demasiado dura para bater com a cabeça nela. Só termina aquilo que um dia começou.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Micronarrativa (24) Aprendizagem

Stephan D. Colhoun, Laughing woman with a cup, around 1955
Não conteve o riso e explodiu numa gargalhada. Não sei o que mais me feriu, se o riso ostensivo, se o seio que, com o ímpeto, se desvelou. O som dessa explosão ecoou durante muitos anos dentro de mim. Talvez fosse apenas a voz da sabedoria que descia sobre mim. Naqueles dias, ainda não sabia quão ridículo é todo o amor.