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quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Micronarrativa (23) Homicídio

Saul Leiter, Carol Brown in “Harper’s Bazaar”, c.1958
Quando entrou não mais consegui tirar os olhos dela. A sua beleza era tão comovente, o seu encanto tão cativante, que, por mais que o quisesse evitar, o olhar fixava-se naquele rosto. Acabei por matá-la. Não exagero. Lentamente, a imagem dela, aos meus olhos, começou a desfocar-se, a ficar granulada, até que os grãos se separaram uns dos outros. Aquele monte de poeira é o que resta dela.

terça-feira, 30 de julho de 2019

Micronarrativa (22) Impaciência

Alexander Rodchenko, Girl with a Leica, 1934
Sentada, ela esperou. Enquanto havia sol, pequenos quadrados de luz iluminavam-na furtivamente. Nesses momentos, a esperança não a abandonara. Depois, fez-se noite e ela confundiu-se com a escuridão. Aquele por quem esperava passou então por ali, mas não a viu. Impaciente, continuou o caminho, esperançado em encontrá-la num outro sítio onde ela nunca haveria de estar.

sábado, 20 de julho de 2019

Micronarrativa (21) O peso da sabedoria

Petr VelkoborskýLittle schoolboy, 1987
A sabedoria é uma coisa boa, muito boa. É o que me dizem lá em casa e a professora não pára de o repetir. Quase acreditei, mas descobri que era uma afirmação falsa, palavras para enganar crianças. A sabedoria é uma coisa pesada, tão pesada que, ao entrar no nosso cérebro, torna-o cada vez mais pesado. Quando estudamos demais corremos o risco de não conseguir levantar a cabeça. Temos de ter cuidado. Nada pior que um homem que não pode erguer a cabeça.

terça-feira, 16 de julho de 2019

Micronarrativa (19) Vingança

Cecil Beaton, Three models dressed in Ladurée macaron colours, 1948
Uma lê, a outra reza. De que estou à espera? Sempre podia pegar num livro ou fazer uma oração, mas ler para quê e rezar a quem? Aguardo que se cansem. Quando quiserem falar comigo, direi que me dói a cabeça, levanto-me e deixo-as aí, abandonadas e entregues aos devaneios com que me esquecem.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Micronarrativa (18) O medo do encontro

Guy Bourdin, Fashion photography, 1970s
Ela queria sentar-se na sua própria sombra, mas um medo ancestral impedia-a. O que seria dela se, esmagada, a sombra se retirasse e ela, sem defesa ou saída, ficasse abandonada à tirania da luz? Então, quando o desejo a impelia, segurava-se a qualquer coisa que impedisse o corpo e a sombra de se encontrarem.

terça-feira, 2 de julho de 2019

Micronarrativa (17) A sombra do desejo

Ray K. Metzker, Philadelphia, 1964
Ela nunca sabia quem iria encontrar ao virar de uma esquina. Umas vezes, não estava lá ninguém. Outras, passava por conhecidos e desconhecidos. O encontro mais decisivo foi aquele em que se deparou com a sombra do seu próprio desejo.

sábado, 25 de maio de 2019

Micronarrativa (16) Da salvação

Rudy Burckhardt, Legs of Woman Walking Across Manhole Cover, New York City, 1939

O barulho dos saltos ao bater na chão ecoa ainda na minha memória. De súbito, levanta-se uma tempestade terrível e ela, temerosa, embrulha-se no silêncio da sua sombra. Caminha então como se levitasse ou um anjo a tomasse em seus braços luminosos para a entregar na casa onde um dia de júbilo a aguarda.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Micronarrativa (15) Indecisão

Elliott Erwitt, Jacksonville, Florida, 1968

Uma inquieta presença insinuava-se à entrada. A sua vida fora sempre um lago de indecisão. Chegava ali e hesitava longamente se devia entrar ou ir-se embora. Acabava sempre por se ir. No dia que entrou, a sua mão ficou agarrada longas horas à porta entreaberta, como se fosse possível apagar o precipitado passo.

sexta-feira, 8 de março de 2019

Micronarrativa (14) Arrebatamento

Pierre Bonnard, Les Grands Boulevards, 1896

De súbito, em pleno dilúvio, um grupo de homens, sob guarda-chuvas, surge na avenida, atravessa-a  em correria desenfreada, e ao chegar ao outro lado elevam-se, como se um vento vindo da terra os arrebatasse para as nuvens negras que cobrem o anil do céu.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2019

Micronarrativa (13) Oração

Pierre-Louis Pierson, Priére, 1860s

Rogo para que venha a palavra que terei a dizer, naquele lugar cujo nome esqueci. Suplico para que a luz me ilumine quando aguardo o rolar inquieto da noite. Imploro o sal que me há-de temperar o corpo e torná-lo pasto de uma boca ávida.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

Micronarrativa (12) Abandono

Toulouse-Lautrec, Seule, 1896

A hora em que, por fim, a solidão chega. Desce sobre o espírito como uma bênção, a graça de um deus sempre desatento ou avaro na distribuição dos seus favores. Traído o corpo, abandona-se sobre o leito como se este fosse um sepulcro e o lugar da libertação.

domingo, 27 de janeiro de 2019

Micronarrativa (11) Paciência

Benvenuto Benvenuti, Calafuria, 1940

Ela saiu pela noite, um barco esperava-a, e desapareceu. Quando ele se levantou de manhã, não a viu. Subiu, então, à torre e começou, não sem obstinação, a perscrutar o horizonte. Fez daquele lugar a sua habitação. Se lhe perguntam se ainda a espera, responde que a sua paciência não tem fim.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Micronarrativa (10) A veladora

Antonio Beato, Karnak Luxor, 1862

Convidei-a a vir no barco. Era a sua última oportunidade, disse-lhe. Ela não o desmentiu. Respondeu apenas que o meu convite era inaceitável. O seu lugar, sublinhou sem tristeza, era nos santuários. Há mais de quatro milénios que velava por eles. Não seria o amor que a desviaria da missão, acrescentou e desapareceu entre as ruínas.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Micronarrativa (9) A carta

Hans Baumgartner, Ferien am Canal du Midi. France, 1949

Sentar-me perto da água e escrever. A anotação de uma memória? Um poema movido pela paisagem? Uma crónica das aventuras em férias? Não. Escrever uma longa carta com tudo o que hei-de querer saber quando chegar a casa e a abrir.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Micronarrativa (8) Anjos

Jean Dieuzaide, Turquie, toit d'une maison. Terrasse de Kayadibi,1954

Quando menos se espera, damos com anjos a espreitarem-nos dos mais inesperados lugares. Uma fresta, uma porta entreaberta, uma janela a ninguém acessível. Voltamo-nos, rapidamente, e lá estão eles com os seus olhos espantados e o coração em ânsia.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Micronarrativa (7) Geisha

Thomas Hoepker, A geisha in traditional oiran dress in a 17th century tea house. Kyoto, 1977

Sentada, ela espera a hora de se elevar. A luz toca-a e ilumina-a para que o segredo a envolva e, para os olhos ávidos, se torne opaca. A sombra espera-a para a conduzir à casa da noite.

domingo, 30 de dezembro de 2018

Micronarrativa (6) A carta

Alexey Titarenko, Old woman, St. Petersburg, Russia, 1999

Estou tão cansada que nem forças tenho para desdobrar o papel e ler a carta. O que poderá ela dizer que eu não saiba já. As palavras que escreveste pesam como chumbo e o meu corpo cansado mais do que para a tua memória inclina-se para a terra.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Micronarrativa (5) O branco e o negro

Chris Killip, Cookie in the Snow, Seacoal Beach, Lynemouth, Northumberland, UK, 1991

Exausto, o homem inclina-se perante o vento. Os pés pisam pesados a palidez da neve e o coração, tocado pelo pulsar do sangue, floresce em pensamentos negros ateados pela brancura da paisagem. 

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Micronarrativa (4) Compaixão

Tereza Zelenkova, The Unseen, 2015

Não é desejo de ficarem incógnitas, nem cumprimento de imperativo religioso. Apenas, compaixão. A sua beleza é tão cintilante que não há quem possa olhar-lhes o rosto e não seja de imediato levado pela morte.

domingo, 9 de dezembro de 2018

Micronarrativa (3) Liberdade

Joaquin Sorolla, Otra Margarita, 1892

Guardada por dois polícias, ela encolhe-se no banco e olha desconfiada, como se, no fundo do seu espírito, soubesse que a sua prisão não era o fim da liberdade, mas apenas o começo.