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terça-feira, 30 de março de 2021

Meditação Breve (154) Tempos modernos

Jeffrey Smart, Autobahn in the Black Forest I, 1979-80

A modernidade é uma imensa cicatriz no mundo. Começou como uma ferida, com o tempo cicatrizou, mas nunca se apagou o rasgão na Terra. Mesmo onde o arcaico e o enigmático persistem, os tempos modernos chegam, rasgando os tecidos, impondo a rasura do que é claro e distinto ao que, por natureza, só pode ser obscuro e sombrio.

quinta-feira, 25 de março de 2021

Meditação Breve (153) Pontes

Louis-Mathieu Verdilhan, Pièces d´eau à Mazargues

Uma ponte liga, por norma, dois pontos pertencentes ao elemento terra que a intromissão do elemento água separou. As pontes mostram o estabelecimento de uma comunhão entre aquilo que o tempo e a natureza tornou diferente. Ligar duas margens não é apenas traçar um caminho transitável. É tornar próximo o que estava afastado. Mostram, porém, uma outra coisa mais decisiva, o homem como pontífice, como construtor de pontes. Cada um traz em si o poder de aproximar o que está afastado. 

quinta-feira, 18 de março de 2021

Meditação Breve (152) Frivolidade

Janine Niepce, Buffet au champagne, Paris, 1963

Um exercício de frivolidade, não porque seja fútil beber champagne ou leviana a vida social, mas porque se representa que se bebe champanhe e se está num acontecimento social. Toda a frivolidade nasce de um movimento em que o self recua temeroso e se duplica através do uso do corpo como uma máscara protectora.

sexta-feira, 5 de março de 2021

Meditação Breve (151) Realidade desfocada

Frederick Sommer, Untitled (Nude out of focus), 1962
Quando a realidade surge desfocada, há a tendência para ver nesse acontecimento um problema óptico, um desconcerto da visão ou dos aparelhos técnicos que a prolongam. Nunca se pensa na natureza penumbrosa dessa mesma realidade que, por vezes, se mostra na sua verdade mais pura. Indefinição sem fim, esboço nublado, caminho perdido entre o ser e o nada.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Meditação Breve (150) Lugares de transição

Carl Friedrich Lessing, Chapel on the Edge of the Wood, 1839

Um longo exercício de auto-suficiência conjugado com uma desatenção contumaz levou a que se esquecesse que o espaço se estrutura segundo qualidades que o diferenciam e lhe dão um sentido feito de múltiplos sentidos. Enigmáticas são as linhas de fronteira entre dois espaços qualitativamente diferentes. Nelas, erguem-se templos para mediar as transições e permitir que os homens viagem de um para outro espaço salvos de todos os perigos.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2021

Meditação Breve (149) A morte

Carl Friedrich Lessing, Cloister Cemetery in the Snow, 1833
Um manto de neve cobre a morte. O que viam os antigos que já não vemos hoje? A neve ainda a vemos, a morte, porém, tornou-se invisível, mesmo se ela não pára e a sua colheita está longe de a deixar na falência. Como, estando tão presente, se conseguiu subtrair aos nossos olhos?

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Meditação Breve (148) Espanto

Fred Herzog, Lucy, Georgia, 1968

Sobre a banalidade da vida e o curso normal do trânsito, um olhar anuncia o espanto, não esse espanto que conduz à casa da sabedoria, mas um outro que espelha o terror que nasce perante a decepcionante trivialidade do real.

sábado, 9 de janeiro de 2021

Meditação Breve (147) Esfinge

Frank Eugene, The sphinx of Giza at midnight, Egypt, 1901

Ali, onde a encontraram, ela vê passar o tempo. Perdeu já a conta aos dias e às noites, às horas em que, imóvel e presa na pedra, contempla o horizonte. Da boca nunca se desprendeu uma palavra, mas nunca deixou de falar, pois a sua voz é a do silêncio. Não tem enigmas a propor aos mortais perdidos na viagem, pois ela é o próprio enigma onde se oculta o mistério do homem.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Meditação Breve (146) Ao crepúsculo

Caspar David Friedrich, A Walk at Dusk, 1832-35

O crepúsculo acolhe o solitário que caminha, não porque este tenha um destino, um lugar onde alguém o espera, mas porque o espírito encontra aí a sua hora, nesse momento indeciso entre a luz e as trevas, nessa metáfora sempre viva de toda a condição humana.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Meditação Breve (145) Criação

Marta Soares, Sem Título XX, 2000
Em todo o processo de criação há uma luta contra a obscuridade, como se tudo fosse uma noite insondável e um pobre artesão combatesse contra a resistência dos materiais e a ameaça do dragão, para que um novo som, uma nova figura, mil novos mundos saíssem das trevas e viessem à luz.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Meditação Breve (144) A solidão do singular

The New York Times Photo Archives. 43rd Street and Broadway. New York. 1937
Não há como as agruras do clima para revelar essa solidão inultrapassável que habita no coração do indivíduo. Pura singularidade, toda a comunhão se dissolve e a energia, sempre tão pouca, concentra-se em chegar ao abrigo, por mais tosco, pobre ou infame que seja.

domingo, 8 de novembro de 2020

Meditação Breve (143) Pobres Penélopes

Júlio Resende, Mulheres de pescadores, 1951
Mulheres de pescadores, pobres Penélopes a tecer redes de sombra e aço para que os seus Ulisses lhes tragam do mar uma rosa, um rubi, o restolho de água enrodilhado no lençol violáceo da morte.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Meditação Breve (142) Sinais dos tempos

Dorothea Lange, A sign of times - depression, 1934
Não há como o tempo para produzir sinais. Não fora a desatenção congénita, a indiferença cultivada e o temor das notícias, e a cada instante o homem disporia de signos e sinais que o abririam para a verdade do mundo, para o saber da terra e para os arautos dos céus. O tempo, não há outro mensageiro como ele.

domingo, 11 de outubro de 2020

Meditação Breve (141) Moinhos e gigantes

Amadeo de Souza-Cardoso, Le Moulin, 1912

Não desdenhássemos nós das visões de D. Quixote e talvez víssemos o gigante que se esconde em cada moinho de vento. Ingénuos e desdenhosos, acreditámos em Cervantes. Vemos um moinho de vento e dizemos: é apenas um moinho de vento. Depois, admiramo-nos que os gigantes nos façam a vida num inferno.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Meditação Breve (140) O além

Ara Güler, Istanbul, 1982
Não vale a pena procurar o além num outro mundo. Neste que cabe aos mortais não faltam aléns e nenhum deles deixa de conter o seu rol de qualidades, às quais não faltam a água do segredo, a luz do enigma e o vendaval do mistério. Espreita-se por uma janela e ali mesmo emerge o mais perturbante dos aléns.
 

sábado, 19 de setembro de 2020

Meditação Breve (139) O fundo obscuro

Salim Dabbagh, Pintura 33S, 1968

Todos julgam saber o que é uma coisa e têm ainda a pretensão de conhecer de onde provêm as coisas com que lidam. No entanto, se se perguntar a proveniência delas, a dificuldade em responder torna-se de imediato patente. Porquê? Porque todos os seres que nos rodeiam provêm de um lugar difuso, de uma semi-obscuridade, de onde irrompem lentamente, ganhando contornos, até que o hábito, criando uma ilusão, as apresenta aos nossos olhos como realidades definidas.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

Meditação Breve (138) Arte

Fernando Calhau, sem título #80, 2000

Todos trazemos no mais recôndito do ser estranhos territórios e inusitadas paisagens. Dormem, desde tempos imemoriais, um sono profundo. São transmitidos de geração em geração, sem que aqueles que os transmitem ou os recebem se dêem conta, até que um dia acordam na cadência de um poema, nas linhas de uma pintura, no ritmo de uma peça musical.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Meditação Breve (137) Espera

Edward Burne Jones, Dorigen de Bretaña esperando el regreso de su marido, 1871
Em toda a espera por algo favorável existe uma combinação do desejo, da fé e da incerteza. Desejo de que o que se espera chegue. Fé na realização do desejo. Dúvida sobre essa chegada. A tensão entre fé e dúvida intensifica o desejo pela possibilidade da sua não consumação. A espera é, deste modo, uma modalidade de dilatação do tempo, pois o desejo intensificado sofre cada ainda não como se este anunciasse a eternidade de um nunca.

domingo, 30 de agosto de 2020

Meditação Breve (136) Café

Diogo de Macedo, sem título, 1923
O café, no tempo em que era a pedra angular de toda uma cultura pública, existia como um espaço onde as solidões se partilhavam, um portal que ligava a realidade e o sonho. Em rumorosos silêncios ou em sufocados ruídos, nele se alimentavam os desejos da carne, os devaneios da imaginação, os eflúvios do espírito. 

sábado, 22 de agosto de 2020

Meditação Breve (135) Expectativa

Jorge de Oliveira, Expectante, 1949
Expectativas nascem de um cálculo de probabilidades ou na promessa feita por um outro, mas elas trazem consigo uma revolta contra o tempo. Possuir uma expectativa é antecipar o futuro, torná-lo presente, dissolvê-lo na sua natureza do ainda não, evitar que ele seja a pura surpresa de um desconhecido.