sábado, 19 de agosto de 2023

A sombra da água (18)

Jacob van Ruisdael, Wooded Landscape with Waterfall and Approaching Storm, c. 1655 [Städel Museum, Frankfurt am Main]

Toda a água contém em si, como uma sombra nascida no princípio do tempo, uma inclinação para a tempestade. Umas vezes, o tempestuoso reside na própria água. Noutras, são elas que o chamam, para que, negro e ameaçador, traga cerzida na desordem a anunciação de uma nova ordem.
 

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 8

Modesto Urgell Inglada, La fiesta mayor, procession

O vento do Norte reparte

as ninfas por fontes e rios,

traz aos dias os velhos mitos.

 

Agosto abre-se aos rumores

de festejos e procissões,

brilham os santos nos altares.

 

Desço a escadaria do tempo.

Sob a névoa de calor vejo

a luz de cada devoção.

 

Agosto de 2023

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Geometrias de fogo (18)

Helmut Middendorf, Elektrische Nacht, 1979

Como num perpétuo inferno, seres humanos mergulhados num destino de trevas entregam-se ao flamejar ansioso das labaredas nascidas no fundo obscuro do coração. Dançam homens e dança o fogo, a realidade contorce-se em geometrias de abandono e insignificância, o desespero move-se pelo território que recebeu em herança. Tudo arde.

domingo, 13 de agosto de 2023

Signo sinal 12. Águas pluviais

Hugo Canoilas, A água da chuva a cair nas bacias oceânicas,2020-2022 (aqui)

Os símbolos sulcam as pradarias oceânicas, onde rebanhos de animais vorazes aguardam as águas pluviais. Esperam delas a pureza decantada na atmosfera, o doçura que equilibrará o excesso de sais e dará um rumo aos que se perdem nos signos dos tempo ou nos sinais de novos mundos.

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Haikai do Viandante (432)

Bernardo Marques, sem título (aqui)
Sentado, um homem
sonha a sombra do tempo.
Cai a luz da tarde.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 7

Salvador Dali, Las llamas, llaman, 1942

São paisagens feitas de fogo.

Árvores antigas em chamas

caem na terra abrasada.

 

Ao mortal silêncio das aves

respondem clamores humanos,

a úlcera do desespero.

 

Ano após ano o deserto

cresce no espólio da vida,

ergue-se, mortalha da Terra.

 

Agosto de 2023

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

O sal do silêncio (102)

Júlio Resende, sem título, 1948 (aqui)
O silêncio da espera é o sal que tempera a expectativa. Sem ele a terra é desprovida de húmus, as coisas perdem os contornos, a vida não encontra o sentido. Aguarde-se em calma silenciosa e a chama do espírito virá trazida pelo vento.

sábado, 5 de agosto de 2023

A memória do ar (17)

Alexandre Estrela, O som no ar, 2010 (aqui)

O ar é o meio memorial onde o som encontra o modo de se propagar, fazer um caminho até que descubra uns ouvidos que transformem as ondas sonoras em signos significantes, em música ou ruído, em promessas de um antigo paraíso ou na ameaça de um inferno de estrépitos e de estrondos, prontos a derramar sobra a terra o tumulto do mal.

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

No limiar (8)

Horst P. Horst, Dali Costumes, 1939
Por vezes, existe na matéria uma dolorosa inclinação para que se tornar humana. Não importa se é viva ou se, pelo contrário, é o mais inanimado dos materiais. Uma finalidade, transparente com a água pura dos regatos de infância, começa a fervilhar e umas mãos começam a moldá-la, segundo uma figuração inscrita na memória da terra. Como numa alucinação, os contornos surgem na mente e as mãos, incapazes de adormecer, tecem na pedra, no plástico, no gesso, na madeira, seja no que for, esses seres que ainda não são humanos, mas já trazem em si, no limiar que os limita, a humanidade que manifestarão aos olhos de quem passa.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Sulcos de Verão 6

Jakob Nussbaum, On the Beach at Port Said, 1925

 

Conto em silêncio os meses

para desenhar do Verão

os sulcos suados da sombra.

 

Na infância, o calor era

domado pelo véu do vento,

o verde a dançar nas árvores.

 

Se ouvia o grasnar das gaivotas,

os olhos perdiam-se na água

suspensa na luz do areal.

 

Agosto de 2023

domingo, 30 de julho de 2023

A sombra da água (17)

Thomas Joshua Cooper, Cabo de São Vicente (meia-noite), 1994

Produzidas na fábrica do silêncio, as águas da meia-noite vestem-se como viúvas a quem o mar roubou os maridos. Então, murmuram canções desconhecidas que o vento, tocado pela maresia, transporta para terra, como se anunciasse a vinda de um mundo novo nascido do cristal salgado dos oceanos.

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Signo sinal 11. Turbilhão

Adelaide Cad’Oro, sem título, 1983 (aqui)

Como num deserto, as areias enovelam-se e batidas pelo vento erguem-se em turbilhão, adquirindo estranhas configurações para sinalizar aquilo que ainda não se vê, mas que o tempo traz consigo já pronto para se manifestar aos olhos de quem saber olhar.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Geometrias de fogo (17)

Vincent van Gogh, Olive Trees with Yellow Sky and Sun, 1889
Os raios solares entram pela terra e adormecem longos meses para, chegada a hora, renascerem como mil frutos das oliveiras que, ao transformarem-se no mais puro dos azeites, alimentarão as pequenas chamas que guiarão os homens na sua peregrinação por campos e cidades ou lhe darão a luz que, na sombra da casa, os abrirá ao mais secreto dos segredos.

segunda-feira, 24 de julho de 2023

Meditação Breve (190) Assuntos domésticos

Max Ernst, El ángel doméstico, 1937

Ter-se-ão zangado os anjos domésticos, agora que desapareceram as fadas do lar, de quem cuidavam e a quem inspiravam os infinitos cuidados que elas, submersas na solidez férrea da sua função, prodigalizavam à casa e aos seus habitantes. Desempregados, esses anjos benevolentes deixaram-se tomar pela cólera e aspiram que a velha ordem seja trazida de volta e com ela as doces fadas com que pessoas desavisadas sonham noite dentro.

sábado, 22 de julho de 2023

Sulcos de Verão 5

Laurence Stephen Lowry, Coming from the Mill, 1930

No desabrigo da cidade,

intermináveis são as tardes

destes dias de calor aceso.

 

Por terra, frutos de Verão

lembram ruínas esquecidas

pela incúria dos homens.

 

Longos silêncios de domingo

são rugas nascidas do tempo,

preces ao Deus abandonado.

 

Julho de 2023

quinta-feira, 20 de julho de 2023

A memória do ar (16)

Dr. S.B. Ward, Winter, 1889
O ar transporta em si a memória de todas as estações. Carrega-a como se sonhasse. Quando é tocado pelas recordações de Inverno, arrefece e corre o mundo, trazendo as águas pluviais que limpam as cidades ou algum nevão que cobre montanhas e planícies com o imaculado véu da brancura.

terça-feira, 18 de julho de 2023

Signo sinal 10. Uma sombra

James Craig Annan, Der Franciscaner, 1896
O silêncio fundido na solidão torna-se uma sombra a pairar pelo mundo. É um animal de fogo no gelo da terra, é uma floresta de água no caminho do incêndio. Vai e vem como um sinal que indica o caminho ou o signo do advento da Primavera.

domingo, 16 de julho de 2023

A sombra da água (16)

Manuel Cargaleiro, Flores na água, 1960
Falemos de processos, desses mistérios em que uma coisa se transforma numa outra. Ouve-se o borbulhar da água e logo, sobre ela, se vê um manto de sombras que protegem o rodopiar em que, lentamente, as gotas se juntam e se tornam nas mais fulgurantes flores. São rosas, tulipas, orquídeas, malmequeres silvestres que se abrem na humidade que as trouxe à vida.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Sulcos de Verão 4

Kazimir Malevich, River in the forest

O Verão desfraldou bandeiras

sobre a paisagem ressequida,

sobre as águas pardas do rio.

 

Os corpos são sombras ligeiras,

tomados pela calmaria

das tardes que nunca têm fim.

 

Ouve-se o ramalhar das árvores.

Ouve-se um cântico nas margens.

Ouve-se o júbilo de Julho.

 

Julho de 2023

 

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Pintura e haikus (32)

Chaim Soutine, House in the Country - 1934

As casas de campo
são mistérios doutro tempo.
Erma solidão.

segunda-feira, 10 de julho de 2023

O Espírito da Terra (26)

Daniel O'Neill, Returning Home, 1956

Quem volta ao lar pisa o chão com leveza, para que a terra permaneça silenciosa e, envolta no seu silêncio, deixe que o espírito que a guia conduza quem se fez ao caminho para retornar ao lugar que é seu, como se voltasse ao paraíso de onde fora há muito expulso.

sábado, 8 de julho de 2023

No limiar (7)

Ana Hatherly, O Homem Invisível, 2001

Uma fossa abissal separa o reino do visível do império do invisível. Neste, os seres não são apenas possibilidades, mas realidades destituídas de corpo. Puras inteligências, eles têm também memória e imaginação, mas não das coisas e dos mundo corpóreos. Recordam as aventuras do espírito e imaginam realidades vivas que, aos nossos olhos, parecerão puras abstracções. Quando se cansam dessa existência sem contaminação, saltam sobre o abismo e chegam ao reino da visibilidade. Na viagem, ganham corpo, escondem no mais íntimo de si o império em que viveram e abrem-se ao reino do contágio e da infecção.
 

sexta-feira, 7 de julho de 2023

Sulcos de Verão 3

Maurice Denis, Paradise, 1912

Envolto em fogo de artifício,

também o Verão foi trazido

pela barcaça do destino.

 

Juiz rude, sem piedade,

distribui pela terra frágil

as suas sentenças ardentes.

 

Sonho sombras e solidão,

a vinda de um Outono eterno,

luz do paraíso perdido.

 

Julho de 2023

terça-feira, 4 de julho de 2023

Geometrias de fogo (16)

Willem De Kooning, Fire Island, 1946

Não há ilhas mais imprecisas que as de fogo. Ao arder, queimam os contornos e alargam as fronteiras. Expandem-se em geometrias incertas, submissas à vontade do vento e aos desígnios das labaredas. Crescem num ruído de tormenta e apagam-se num silêncio de cinzas.

domingo, 2 de julho de 2023

O sal do silêncio (101)

Weegee, Sleeping at the Bar, 1939

Quando os sonhos são urgentes, qualquer lugar serve para que, rasgando o ruído com o arado do silêncio, chegue o sono, não aquele que retempera as forças e abre o corpo para a azáfama de cada dia, mas o que abre o espírito ao sal da imaginação. 

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Sulcos de Verão 2

Eusebio Sempere, Verano, 1965

O ardor do fogo cintila,

mácula na pele rasgada

pelo dardejar dos incêndios.

 

Os corpos rastejam na sombra,

pedem a clemência da água,

o vento frio vindo do Norte.

 

Junho passa inflamado e rude

pelas ruas vazias de vida,

pelas almas ébrias de sonhos.

 

Junho de 2023

quarta-feira, 21 de junho de 2023

Sulcos de Verão 1

Edvard Munch, Día de verano, 1904-1908

Como uma velha assombração

chega a verruma do Estio

cingida na luz do silêncio.

 

Os dias abrem-se em sonhos,

promessas de glória nos mares,

o olhar perdido na névoa.

 

Sento-me na sombra da tília,

oiço no rumor da memória

o verde Verão da infância.

 

Junho de 2023
 

segunda-feira, 19 de junho de 2023

A memória do ar (15)

Imogen Cunningham, Dream Walking, 1968
Esqueça-se a solidez dos corpos, com a sua submissão aos imperativos da gravidade. Esqueça-se o desenho da sua figura, com o sublinhar espesso dos contornos. Deixemos que os sonhos se sonhem em corpos feitos de ar, para que a leveza do desejo se possa expandir do centro da terra para o universo sem fim. 

sábado, 17 de junho de 2023

Impressões 111. Na lagoa

Heinrich Kühn, Abend In Der Lagune, 1895

Ainda não é uma noite de bruma, nem a glória das águas se eleva para os céus onde, vigilantes e eternos, os astros observam as lentas metamorfoses da vida na terra. Dois veleiros cruzam a lagoa, procuram porto de abrigo, na esperança de encontrar um lugar onde o lume cintile e envolva os corações com o manto do calor. É como se um sonho se inscrevesse na paisagem para a preencher de impressões esquivas, toldadas pelo marulhar das águas, e segredos habitados por uma longa demora.

quinta-feira, 15 de junho de 2023

A sombra da água (15)

Charles Job, Evening Calm, 1905

As águas chegam a terra e abrem-se numa herança inesperada, tocam-na com os seus dedos feitos de um lume tão lento como os dias da infância, acariciam-na com mãos de seda, rasgando-lhe sulcos por onde desliza a sombra das horas de melancolia.