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quarta-feira, 2 de julho de 2014

Da vida do espírito

Ralph Gibson - Untitled, (from The Somnambulist) (1970)

Em todos os símbolos há uma ambiguidade essencial, como se o símbolo possuísse uma carga semântica tal que simbolizasse, ao mesmo tempo, coisas contrárias. A porta é um dos símbolos mais ricos do imaginário dos homens. Nela existe também essa carga simbólica contraditória. É o símbolo da saída e também o da entrada. A razão analítica apresenta entrada e saída como contrárias, mas a experiência imemorial dos homens diz-lhes que toda a saída é uma entrada e toda a entrada implica uma saída. Ora a viagem do homem é o contínuo deslocar-se nessas encruzilhadas de entradas e de saídas, como se a viagem do espírito fosse infinita. Nunca se entra num patamar que não seja para dele sair. Nunca se sai de outro patamar que não seja para entrar no próximo.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Atravessar a ponte

Andreas Feininger - Storm clouds hover over the Brooklyn Bridge and the ghostly skyscrapers 
of Manhattan’s financial district in March (1946)

Imaginamos sempre que uma ponte assegura a continuação de um caminho que um obstáculo interrompe. Passar a ponte é retomar a normalidade quebrada. Mas a passagem de uma ponte pode ser uma prova, uma prova tormentosa. Nessa passagem alguma coisa se transforma em nós e quando se chega ao outro lado já se será outro. Não.Uma ponte não assegura uma continuidade, não é uma mera ligação que une o idêntico. Ela é um lugar de ruptura, de descontinuidade, o símbolo que nos chama à transformação, à metanoia.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Na cintilação da água

Joshua Benoliel - Fragatas do Tejo (1912)

Na trémula cintilação da água navegam os velhos sonhos da humanidade. Fragatas não são fragatas, mas símbolos de um desejo vindo de tão longe que não sabemos onde nasceu. Por maiores que sejam as rotas ou por mais exactas as cartas de marear, voltamos sempre aquele mistério que nos fala da queda do homem e da expulsão do velho paraíso.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Da elevação e da queda

Brassaï - Les Escaliers de Montmartre, Paris (1930)

A escada surge, muitas vezes, como o símbolo de uma árdua subida ao que é mais elevado, mas é também um instrumento de descida. Melhor, a escada é uma forma de ocultar a própria queda. Descer tranquilamente é ainda uma forma de passar para um nível menos elevado, para um grau de compreensão da realidade menos luminoso, para um afastamento daquilo que é superior. Como todos os símbolos, a escada tem uma natureza ambígua. Mostra ao homem o esforço da elevação e esconde-lhe a tragédia da queda.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

O fascínio das catedrais

Albert Gleizes - Catedral (1912)

Pergunto-me muitas vezes o que motivará o poderoso fascínio que as catedrais exercem sobre o espírito. Não será uma motivação religiosa de carácter cultual ou de natureza estético-arquitectónica. Tudo isso, sendo importante, suporta uma outra coisa. Suporta uma imagem de imobilidade que se dirige ao espírito através da densidade da pedra. Para o viandante, a catedral simboliza, por instantes, o fim do caminho. Não daquele que o levou até ela, pois esse será, passada a imersão do espírito na imobilidade ali simbolizada, retomado, mas do caminho que conduz ao centro onde todos os caminhos se reúnem e dissolvem.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Duas árvores

Hercules Pieterszoon Seghers - Duas árvores (1.ª metade do séc. XVII)

A árvore não é apenas o símbolo da nossa condição actual, ao manifestar que somos seres que pairam entre a terra e o céu, seres cujas pulsões penetram no que há de mais sombrio na existência, mas cujas aspirações são guiadas pela luz que chega do céu, o qual não cessa nunca de nos convocar à elevação, apesar da terrível força da gravidade. As árvores - fundamentalmente quando surgem como um par - recordam-nos a nossa antiga condição mítica, aquela de onde fomos expulsos ao comer o fruto proibido. Olho o quadro de Seghers e reconheço de imediato a árvore da ciência do bem e do mal e a árvore da vida. E neste reconhecimento, o velho mito renova-se e continua vivo.

sábado, 13 de julho de 2013

Um tempo de água e fogo

José Manuel Ciria - Água e Fogo (2000)

Água e fogo são dois símbolos primordiais. São, como todos os símbolos primordiais, fonte originária de sabedoria e fundamento de todas as racionalizações que permitem dar um sentido humano ao mundo. Na tradição ocidental, água e fogo não são apenas dois dos elementos centrais - juntamente com o a terra e o ar, por vezes, com o éter - da teoria dos elementos que animou as primeiras especulações dos gregos. Eles surgem também no cristianismo, a água do baptismo, o fogo onde se manifesta o Espírito Santo. A água que purifica e torna inocente, o fogo que confere sabedoria.

A história do mundo, nos últimos decénios, tem sido marcada pela perda de solidez, pela fluidificação da vida e das instituições. É como se a terra sólida se transformasse em água, mas não na água que purifica, antes na água que anuncia um naufrágio. Mais uma vez os símbolos originários são chamados para dar sentido ao acontecer. É esta água que anuncia o naufrágio - ou um dilúvio - que está a reclamar a outra água, aquela que purifica e restaura a inocência. Mas no actual estado das coisas, não basta purificar, é necessário a sabedoria que só o fogo pode trazer. Este é, de novo, um tempo de água e fogo.

quarta-feira, 29 de maio de 2013

O mistério do visível

Benvenuto Benvenuti - O portão fechado (1907)

A porta fechada surge muitas vezes como um símbolo fundamental da vida dos homens. Simboliza a diferenciação de territórios, simboliza os processos de exclusão e de inclusão num dado grupo, simboliza o mistério, ao ocultar o que está para além dela, simboliza também o desafio e prova. A porta propõe um exercício de ultrapassagem da situação em que se está para uma nova situação desconhecida e misteriosa. Ao olharmos para o portão fechado representado no quadro de Benvenuto Benvenuti não encontramos, num primeiro momento, as características mais perturbantes de uma porta. Na verdade, este portão partilha com a porta fechada a mesma potência de demarcação territorial e traça também as regras do jogo da exclusão e da inclusão. Como na porta,não é a mesma coisa estar num lado ou no outro do portão. Falta-lhe, contudo, a dimensão central do mistério. O portão deixa ver em vez de ocultar. O transeunte pode constatar a continuidade entre os dois lados da fronteira, de que o portão fechado constitui o sinal e o lugar de passagem.

Esta sensação de ausência de mistério e de desafio é, porém, ilusória. A transição de um lado para o outro do portão implica uma mudança territorial e a submissão do sujeito a novas regras, as quais estão longe de ser conhecidas. O mistério reside não no que está oculto materialmente, mas nas regras inexpressas daquilo que se vê, e que ao ser visto parece ser conhecido ou idêntico ao conhecido. O mistério - porventura um mistério perturbante - está agora naquilo que é visível, naquilo que é opressivamente visível. Não há mistério maior do que aquilo que não aparenta mistério algum, como se a sua claridade, distinção e transparência fossem apenas o sinal do maior dos desafios. Passar aquele portão pode ser a maior das provações e a mais perigosa das aventuras. Perante ele, deve o viandante interrogar o seu coração e perguntar-se se será por ali o seu caminho.