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quarta-feira, 20 de março de 2013

Verdade e libertação

Lecomte du Noüy - White slave (1888)

Naquele tempo, dizia Jesus aos judeus que n'Ele tinham acreditado: «Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres.» Replicaram-lhe: «Nós somos descendentes de Abraão e nunca fomos escravos de ninguém! Como é que Tu dizes: 'Sereis livres'?» Jesus respondeu-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo: todo aquele que comete o pecado é servo do pecado, e o servo não fica na família para sempre; o filho é que fica para sempre. Pois bem, se o Filho vos libertar, sereis realmente livres. Eu sei que sois descendentes de Abraão; no entanto, procurais matar-me, porque não aderis à minha palavra. Eu comunico o que vi junto do Pai, e vós fazeis o que ouvistes ao vosso pai.» Eles replicaram-lhe: «O nosso pai é Abraão!» Jesus disse-lhes: «Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão! Agora, porém, vós pretendeis matar-me, a mim, um homem que vos comunicou a verdade que recebi de Deus. Isso não o fez Abraão! Vós fazeis as obras do vosso pai.» Eles disseram-lhe, então: «Nós não nascemos da prostituição. Temos um só Pai, que é Deus.» Disse-lhes Jesus: «Se Deus fosse vosso Pai, ter-me-íeis amor, pois é de Deus que Eu saí e vim. Não vim de mim próprio, mas foi Ele que me enviou. (João 8,31-42) [Comentário do Concílio Vaticano II aqui]

O texto de hoje gira em torno do tema da libertação. É grande a perplexidade dos judeus ao escutarem a ideia de libertação, pois eles nunca foram escravos, como poderão ser libertos? Esta reacção denota que a questão da libertação ultrapassa o par antitético escravo – homem livre. Tão servos podem ser os escravos como os homens livres. Aquilo que emerge no texto está antes – no sentido de ser mais essencial – da mera categorização social e política. O que nos ensina João?

Surpreendentemente, ensina-nos que a liberdade é uma questão de aprendizagem, que ela implica um processo – um processo de libertação – e, sendo assim, ela, a liberdade, não é um dado natural do homem. Essa aprendizagem está indicada na primeira fala de Cristo, que a tradução acomoda de tal forma a uma visão banal que se perde a originalidade do texto grego. Ele poderia ser traduzido antes assim: se permanecerdes (ou persistires) na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos. A relação ao logos (palavra ou verbo, de preferência a mensagem) não é de uma mera adesão do espírito, não é uma fidelidade de crença, mas antes um permanecer na palavra. Na fidelidade ou na crença, a relação do fiel ou do crente em relação ao objecto da sua crença ainda é marcada pela exterioridade. O texto de João propõe outra coisa, propõe um estar em (estar no logos), um ser em. Creio, pois estabeleci-me e persisti no logos.

A aprendizagem, o discipulato, é essa persistência no logos. Ao viver no logos (na palavra), conheço a verdade. A verdade, porém, não é o mero acordo entre uma proposição e a realidade. A palavra grega utilizada no texto (ἀλήθεια) remete para a ideia daquilo que se desoculta, que se revela. E é isso que se desoculta pela persistência no logos (na palavra ou no verbo) que liberta o homem. Não menos misteriosa, porém, é a palavra grega (ἐλευθερώσει) utilizada para a ideia de libertação. Ela remete para ἐλεύθερος que significa livre e livrado (ou libertado) de uma obrigação, i. e., desobrigado.

Todo o diálogo com os judeus está marcado por uma incompreensão essencial. Estes falam da sua natureza e julgam-se livres segundo a natureza, pois nunca foram, social ou politicamente, escravos. Mas o que Jesus lhes diz é que essa natureza representa uma obrigação que os torna servos, que os obriga à servidão. É uma natureza que, em última análise, se pode dizer desnaturada. Só a verdade liberta. Mas a verdade não é da dimensão do discurso mas da vida vivida na palavra (logos), de uma vida que permite desocultar uma outra natureza, desocultação que liberta e desobriga o homem da servidão a essa natureza desnaturada. O pecado, mesmo entendido como errância, não é outra coisa senão a servidão, enquanto a aprendizagem pela permanência no logos é desocultação daquilo que nos desobriga e, desse modo, nos retira da servidão e torna livres.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Liberdade e mística

Maria Helena Vieira da Silva - Liberdade (1973)
 
A mística, correctamente compreendida, é o reino da liberdade: liberta o homem tanto dos seus condicionantes transcendentes como dos imanentes, sem o deixar afundar-se numa libertinagem anárquica, porque lhe abre-lhe a via para realizar a sua identidade. (Raimon Panikkar, Mystique plénitude de Vie, p. 210)
 
Para além da liberdade de iniciativa - a possibilidade de iniciar uma acção determinada por si mesmo -, há uma outra liberdade, aquela que nasce da libertação daquilo que nos torna estranhos a nós próprios e que nos aliena. Quando Marx afirma a religião como o ópio de povo, percebe-se que ele próprio possui uma visão alienada do fenómeno religioso e não compreende que a emancipação efectiva não só é anterior à questão económica e política, como tem uma natureza muito mais radical. Emancipar-se significa libertar-se tanto das condicionantes interiores como das exteriores. Ora é isto que as diversas escolas místicas propõem como experiência pessoal, certamente dentro de comunidades, mas não como projecto colectivista. Encontramos assim uma outra porta de entrada na modernidade, de onde a experiência religiosa não terá de ser expulsa mas onde se pode constituir como o elemento central do ser moderno. As diversas libertações e emancipações modernas, desde o liberalismo racionalista ao marxismo, são apenas visões degradadas e decaídas de uma experiência da liberdade muito mais fundamental, aquela que é o objecto central da mística.


quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Silêncio


Silenciar o tumulto do pensamento, deixar lentamente que ele se desvaneça, e esperar na escuridão do espírito que uma palavra venha iluminar as trevas. O que vier virá na liberdade, livre e inesgotável, tão inesgotável como o silêncio que sobre o espírito cai.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Paz e liberdade


A longa análise que Michel Foucault, em É Preciso Defender a Sociedade, faz das posições do conde Henri de Boulanvilliers acaba por fazer pensar, mais uma vez, na difícil relação que o Cristianismo tem com a história e a política. A ideia central de Boulanvilliers, segundo a leitura foucaultiana, reside em ver o desenvolvimento tanto do direito como da política como uma forma de continuação da guerra e do direito de conquista. Contrariamente ao que dirá posteriormente Clausewitz, a norma pressuposta é que a política seja a continuação da guerra por outros meios. Também a liberdade, para o aristocrata francês do século XVII, reside no poder de limitar a liberdade dos outros, i. e., de submeter os mais fracos. Estas duas ideias são centrais no argumentário de Boulanvilliers a favor das prerrogativas  da aristocracia franca sobre os derrotados gaulo-romanos (que constituiriam o terceiro estado) e contra a pretensão absolutista da monarquia francesa.

Ora aquilo que Cristo traz ao mundo é um princípio de paz contra o direito e a supremacia fundados na guerra, bem como uma liberdade cuja finalidade é a libertação de tudo aquilo que cativa o espírito do homem e o subjuga. Paz e liberdade (entendida como desapego, segundo Eckhart) que cada um deve realizar na sua existência e, através dessa realização pessoal, fazê-las entrar no tecido social e enfrentar a longa tradição da crueldade e da sujeição. Independentemente do comportamento da Igreja, muitas vezes demasiado mundano, o Cristianismo semeou um conjunto de valores que acabaram por fundar, contra a experiência histórica da violência, os princípios de civilidade mais elevados que, até hoje, foram trazidos à humanidade. Que esse mesmo Cristianismo tenha sempre uma relação tensa com a dinâmica social - mesmo, e talvez de forma mais acentuada nesse caso, quando era social e politicamente dominante - não admira, pois nem a paz nem a liberdade, como libertação e desapego, são valores deste mundo. E é este carácter adversarial da religião cristã relativamente à longa tradição histórica que marca um princípio de esperança para os homens, independentemente do comportamento efectivo dos que se dizem cristãos ou da própria instituição que suporta esses valores. Os valores - a paz e a liberdade - estão aí como uma injunção.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Do ponto de partida

Múltiplas são as armadilhas que espreitam o caminho do viandante. Uma das mais obstinadas é a do sentimento de necessidade de um princípio ou ponto de partida. Esse sentimento de necessidade extrema de um princípio seguro obsidia aquele que caminha. Quando se caminha há a estranha sensação de incompletude, de falta, de uma falta originária. A inquietação dissemina-se e o viandante não sabe onde colocar os pés nem qual o lugar que ocupa. Esse sentimento de falta de um princípio toca toda a viagem, fazendo com que ela seja percepcionada como coisa pouco sólida, pois não existe a solidez de um fundamento. Em vez de caminhar, ele fica preso na busca desse princípio originário, desse alicerce sólido que lhe permitiria caminhar com toda a segurança. Mas tudo isto é mera distracção, fuga perante a realidade. E a realidade é crua: não há fundamento, nem ponto de partida, nem solidez ou segurança. A viagem não começou nunca, apenas estamos já nela e não há companhia de seguros que nos assegure um destino ou a tranquilidade da marcha. Há apenas o entregar-se a ela, puro e livre.

domingo, 30 de agosto de 2009

Despotismo das circunstâncias

Um mês longe dos afazeres habituais, mas mesmo assim submetido ao despotismo das circunstâncias. O sentimento desse despotismo é a medida da ausência de liberdade.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Seja feita a Vossa vontade

Escreve Eckhart."Deus deseja que em todas as coisas renunciemos à nossa vontade." O que significa, porém, essa renúncia? Antes de mais, significa a renúncia ao particular, ao subjectivo, ao perspectivístico, ao relativo. Desapossar-se de si, renunciar à vontade própria, significa, então abrir-se ao que não tem limites, ao que não é particular, ao universal e ao absoluto. Isso não pode ser compreendido, todavia, como uma afirmação da natureza absoluta da criatura, mas apenas a afirmação da sua possibilidade de participar naquilo que a ultrapassa. A vontade própria encerra-nos na pequenez da nossa propriedade. Renunciar a ela é abrir-se aquilo que lhe é incomensurável. A vontade própria é uma prisão. Renunciar a ela é renunciar à servidão. Seja feita a Vossa vontade, foi isto que o Cristo veio dizer aos homens. Dito de outra maneira: sede livres.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Da propriedade e do desprendimento

Com o passar dos anos a morte biológica torna-se cada vez mais presente, mas, ao mesmo tempo, o temor que nos acomete nos anos da juventude, um temor secreto e inconfessado, vai-se dissipando como se a própria natureza fizesse ouvir no ser biológico a verdade dos seus imperativos. Aprender a morrer e a estar morto era o exercício que Platão, no Fédon, dizia constituir a natureza da filosofia. Mas esta aprendizagem da morte não é o desejo de pôr fim à vida, mas o exercício contínuo do desprendimento. Aprender a desprender-se daquilo que nos rodeia não é indiferença perante o mundo. O desprendimento parece antes ser uma via para a verdade do meu próprio ser. Só na verdade de mim é possível criar o espaço onde tudo o que é ganha um novo sentido. Este sentido nasce das coisas serem consideradas já não a partir da fractura da propriedade, do que é meu em oposição ao que é teu e ao que é do outro. Não é que os direitos de propriedade possam ou devam ser violados, mas devem ser remetidos para a esfera do animal que labora e, apesar desse animal ser humano, a propriedade não é menos, por isso, um instinto animal. Desprender-me da minha propriedade, mesmo que ela continue minha, é aprender a desprender-me da minha dimensão biológica ou, talvez seja o termo mais adequado, zoológica. Aprende-se a morrer morrendo para o que é próprio e aquilo que há de mais próprio no homem é o desejo de propriedade. O próprio escravo deseja-se proprietário de si. Talvez a experiência da liberdade só possa nascer desta aprendizagem do desprendimento.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Abrir o espaço

Cada um deverá encontrar o seu caminho, mesmo que esse caminho seja obscuro e incompreensível. Ir para além das aparências empíricas, escutar em silêncio o silêncio que fala, deixar que a palavra que cada um de nós é se torne no inaudível som que nos deve guiar, tudo isso só pode acontecer na liberdade mais estrita e na responsabilidade perante a própria existência. Poderemos salvar os outros? Se isso se entender como proselitismo, então é impossível salvar seja quem for. Mas se salvar for entendido como a abertura de espaço para que cada um encontro o seu caminho, poderemos não impedir que o outro encontre a sua via. Nos dias de hoje, não faz qualquer sentido falar com os homens modernos como se eles fossem destituídos de autonomia e não passassem de crianças a quem se lhe tem de meter medo para não caírem no maior dos perigos. Não era S. Paulo que dizia que onde abunda o pecado, abunda a graça?