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segunda-feira, 21 de novembro de 2016

O cavalo de Tróia

Lovis Corinth - The Trojan horse (1924)

Nos dias de hoje tornou-se natural interpretar as narrativas míticas como uma reminiscência - por norma, distorcida - de acontecimentos reais. O efeito é rasurar a carga simbólica que a narrativa mítica traz consigo e, através dessa rasura, pôr de lado a natureza espiritual que o mito concentra em si e desencadeia naquele que o escuta e o perscruta. O cavalo de Tróia não foge à regra. As leituras ficcionais ou científicas anulam o ensinamento espiritual que o mito traz consigo. Muitas vezes, o espírito ilude-se a si mesmo e, julgando-se vencedor da aventura espiritual que elegeu, traz para si, como se fosse um prémio, o cavalo de Tróia que tornará patente a sua derrota e a ilusão em que persistia. 

sábado, 19 de novembro de 2016

Da ambiguidade da memória

Gino Severini - Memories of a Journey (1911)

A memória traz consigo, devido à sua própria natureza, uma ambiguidade que não deixa de assombrar a vida espiritual dos homens. Toda a vida espiritual tem uma dimensão de rememoração, de anamnese, onde o exercício da reminiscência liga o sujeito ao fio condutor de uma tradição. O exercício memorial, porém, pode constituir um fascínio de tal modo poderoso que desliga o homem da sua própria viagem, e esta é sempre um estar no presente, uma atenção plena e total ao puro acontecer no aqui e no agora.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Acerca da definição

Albert Porta - Book of Definitions (1978)

Uma das inclinações mais notáveis do espírito humano é a de se entregar ao trabalho da definição. Definir significa antes de mais limitar. Assinalado um território assim limitado, passa-se ao processo da sua caracterização para lhe dar um sentido. Contudo, nesta tarefa que está na base da filosofia e da ciência há um tal estreitamento do horizonte que o mesmo espírito sente toda a definição como um produto estranho e, em última análise, ameaçador. É por isso que a vida espiritual é uma revolta contínua contra a definição, uma guerra sem parar do espírito consigo mesmo, contra aquilo que nele é tendência mórbida e inelutável para a limitação.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Pastores sem ovelhas

Pére Pruna - O Bom Pastor (1950-55)

No epíteto de Bom Pastor não emerge apenas a bondade como traço de carácter ou como qualidade técnica na condução do rebanho. Surge também a ideia de rebanho. O problema que se coloca às religiões do Livro - nomeadamente, ao Cristianismo - é que vivemos numa época em que os homens deixaram de se compreender como ovelhas de um rebanho. Este é o drama das igrejas cristãs e o terror dos clérigos muçulmanos. Que fazer com homens que dispensam pastores? Estarão eles condenados a uma vida destituída de relação com o espiritual? Nada aponta nesse sentido. Pelo contrário. O que os homens de hoje em dia dispensam não é a vida do espírito, mas o serem transformados em eternas crianças - em ovelhas de um rebanho - entregues à guarda de pastores que, muitas vezes, estão longe de serem bons. Pensar por si mesmo, essa injunção do Iluminismo, não é uma revolta contra o espírito, mas um novo fundamento de uma vida espiritual mais plena, mais profunda e mais comprometida.

domingo, 13 de novembro de 2016

Tagarelice

Federico Zandomeneghi - Bavardage

Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento da vida do espírito, seja em que dimensão for que esta se manifesta, é a tagarelice. Esta é muito mais do que um assunto e um vício de grupos de pessoas que assim se ocupam na vida privada. A tagarelice é a essência da esfera pública. Mesmo os assuntos sérios e decisivos da vida das comunidades transformam-se, na esfera pública, num exercício onde os tagarelas se exibem e dominam a paisagem social. O pior da tagarelice, porém, não se encontra aí. O pior é a tagarelice íntima que a consciência de cada um empreende consigo mesma. Esta tagarelice íntima, mãe de todas as outras, é o sinal de uma doença do espírito, que se cinde para empreender consigo mesmo uma conversação fútil e sem fim, um exercício de distracção e de alienação, de perda na mais pura errância. 

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

Da convergência

Jackson Pollock - Convergence (1952)

A vida, devido à multiplicidade de experiências que proporciona, é o lugar onde a consciência, ao romper com a sua unidade ingénua, é arrastada de divergência em divergência, o que a poderá conduzir à cisão absoluta, à mais escura das patologias. A vida espiritual é o exercício de um retorno a si, de uma convergência consigo mesmo para além da unidade ingénua e da dissipação na divergência, é o lugar da salvação, entendida esta como a terapia dessa cisão que torna o homem estranho a si mesmo.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Prisioneiros

Lorenzo Viani - I carcerati (1912-15)

Pelo menos desde Platão e a famosa Alegoria da Caverna que se elaborou a estranha concepção de que somos todos, de alguma forma, prisioneiros. Esta ideia, de uma fecundidade ainda não devidamente avaliada, conduziu, no Ocidente, a uma série de processos de emancipação. Não será, porém, a ideia de que o mundo e o corpo são uma prisão para o espírito uma derradeira prisão de que o homem precisa de se libertar? Não será essa cisão entre o espírito e o corpo, o espírito e o mundo, a mais perniciosa das ilusões. A crença de que o espírito está prisioneiro é, na verdade, a própria prisão a que o homem voluntariamente se sujeita.

sábado, 5 de novembro de 2016

Desejo de Inverno

Edvard Munch - Winter Night (1900)

Há um momento no Outono em que o espírito é tomado por um desejo intenso de Inverno. Não pelo rigor do clima em si mesmo, mas porque esse tempo acorda no coração dos homens um desejo de recolhimento e silêncio. O Verão é, para muitos, uma bravata inútil. O tempo invernoso tem esse poder simbólico de abrir o homem, nem que seja naqueles momentos em que medita perante o fogo de uma lareira, para tudo o que é essencial.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

De foz em foz

Lyonel Feininger - Ao longo do rio (1952)

A vida espiritual do homem ocidental foi demasiado marcada pela imagem heraclitiana da impossibilidade de mergulhar duas vezes nas mesmas água de um rio. A cintilação da dialéctica de Heraclito, consubstanciada nessa ideia, ocultou aquilo que será mais decisivo. E o mais decisivo não é tentar mergulhar nas mesmas águas, mas deixar-se ir ao longo do rio, aprender a flutuar e a fundir-se no fluxo que leva da nascente à foz, e desta, tornada nova nascente, até à próxima foz.

domingo, 30 de outubro de 2016

O estado arenoso

Gonzalo Chillida - Arenas (1969)

A educação dos seres humanos tende a privilegiar a solidez. Torná-los sólidos, com uma vida solidamente assente na terra, com uma função consistente, em instituições, também elas, firmes como a rocha. A ilusão da solidez é o resultado dessa educação, uma ilusão persistente e, muitas vezes, inultrapassável. A vida do espírito, porém, procura a fluidez, tornar o homem livre como o vento, aquele que sopra onde quer. O primeiro passo é o da fragmentação daquilo que é sólido. As areias são já um compromisso com essa fluidez. Não são líquidas, mas também, na verdade, já não são inteiramente sólidas. O estado arenoso é o primeiro passo da libertação do espírito da ilusão da solidez. Tudo o que é solido se fragmenta e se desagrega.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Sem forma nem figura

Jacint Salvadó - Informel (1959)

A vida do espírito, nas suas diversas manifestações, é fluida, sem contornos definidos, por vezes parece um lago calmo ao entardecer; outras, um rio caudaloso na força do meio-dia. É o terror sentido perante a fluidez e o informal que leva os homens a projectar sobre ela esta ou aquela figura, a atribuir-lhe esta ou aquela forma. Ela, porém, nunca se conforme e irrompe ora selvagem ora murmurante, destruindo incessantemente as formas com que o nosso medo a tenta cobrir. Ela, a vida do espírito, é o que não tem forma nem figura. É apenas um puro fluir.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Gramáticas

Paul Serusier - Grammar (1892)

As línguas estruturam-se através de uma gramática. Tendencialmente, apesar dos movimentos centrífugos do discurso, a gramática tende a ser única, nem que seja por pressão das necessidades comunicativas. A vida do espírito, seja em que área for, começa com uma rebelião contra a gramática. O caminho que cada um faz é único e incomunicável. Essa singularidade incomunicável não dispensa uma gramática, mas impõe uma morfologia única e uma sintaxe própria, isto é, uma gramática não partilhável. A vida do espírito começa para além da dimensão do comum, da comunicação e da própria comunhão.

domingo, 16 de outubro de 2016

Do assentimento

José Alfonso Morera Ortiz - "Amén" (1990-94)

O assentimento, que a expressão de origem hebraica amém traduz, é compreendido, muitas vezes, como a conformação passiva a um destino. Essa compreensão obscura acaba por ocultar um outro lado do assentimento. O da luta com a suspeita, a confrontação com o incerto, o dilaceramento da dúvida. Assentir, desse ponto de vista, não é a aceitação de uma derrota, mas a expressão de uma vitória sobre si mesmo.

domingo, 9 de outubro de 2016

Renúncia

Albert Rafols Casamada - El Depósito (1981)

A vida material é orientada pela ideia de acumular. Os materiais acumulados exigem grandes depósitos. A vida do espírito procura, a cada instante, aquilo que não se pode acumular, pois quanto mais se acumula menos se tem. Quanto mais se partilha, mais há para usufruir. Por isso, não apenas se afasta do exercício da acumulação como começa, de facto, pelo abandono de todo e qualquer depósito. A renúncia ao que é próprio é a sua condição de possibilidade.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Do avanço

André Louis Derain - The Turning Road (1906)

Em qualquer área da vida do espírito - e qualquer actividade humana, por física que seja, é sempre uma actividade espiritual - o caminho está longe de ter a configuração de uma recta, uma espécie de estrada que se abre, sem qualquer curva, à frente dos homens e que não teria fim. O caminho é infinito, certamente, mas obriga a voltar atrás uma e outra vez, numa aparente circularidade que, vista de fora, se percebe como uma espiral, onde o viandante vai avançando, mesmo quando é obrigado a retroceder. Por vezes, é no próprio retrocesso que se encontra o efectivo avanço.

sábado, 1 de outubro de 2016

Do crescimento


A vida espiritual tem por finalidade tirar os seres humanos da sua menoridade, do fascínio que sobre eles exercem os objectos do mundo e, assim, os prendem às aparências. Por isso é frequenta a analogia com a vida dos cereais. Também os seres humanos são sementes deitadas à terra. Grãos que germinam e têm a possibilidade de crescer, de se tornarem naquilo que potencialmente são. O culto romano da deusa Ceres não deve ser apenas lido como o sintoma de uma dependência dos homens dos cereais. Ceres provém da raiz indo-europeia "Ker", que significa crescer. O crescer dos cereais, protegido pela deusa, era um modelo que orientava a própria vida do espírito. O trabalho agrícola mais que um labor físico era uma actividade espiritual.

Pintura de Oscar Dominguez - Ceres (1952). Guache sobre papel. Dimensões: 207 x 295,5 cm.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Da profundeza

Georges Rouault - De profundis (1917-27)

O ser humano é um habitante do mundo do meio. Não pertence nem ao território rarefeito do alto, nem às terras inóspitas das profundezas. Essa vida no mundo mediano, porém, limita-lhe o olhar e o desejo. Acontece, muitas vezes, que, arrastado para essas profundezas, fazendo a experiência da queda e do adverso dos baixios, ele ergue os olhos para cima e o seu desejo leva-o para além daquilo que cabe ao homem.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

A demanda

Salvador Dali - El farmacéutico de Ampurdán que no busca absolutamente nada (1936)

A vida do espírito começa como uma demanda. Alguém sente que perdeu alguma coisa ou que lhe falta algo. Parte, então, em busca daquilo que sente em falta. A demanda arrasta-o e traz com ela o sentimento da perda e da inutilidade. Será que haveria alguma coisa para buscar? Quando descobre que nada havia para demandar, sente, no mais fundo de si, a alegria de ter encontrado o que procurava.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Inquietações e incertezas

Luis Prades - Ángeles inquietantes (1964)

A inquietação não é apenas um mero estado psicológico. Ela é também uma experiência existencial. A inquietação traduz uma crença profunda alicerçada na certeza de que o mundo é tal como estamos habituados. Quando a realidade se torna incerta, a incerteza traduz-se na inquietação. Deparam-se então dois caminhos ao viandante. O primeiro liga-se à tentativa de recuperar o mundo da certeza, para que a crença não se desfaça e a inquietação desapareça. Este é um caminho reactivo. O segundo caminho funda-se na aceitação da incerteza, no fazer dela a estrada por onde se vai, e aceita que a nossa crença na estabilidade do mundo é uma projecção da nossa necessidade de segurança e nada tem a ver com a realidade. Este é o caminho do espírito, que aprende que o vento soprar onde quer.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Eclipses e conversões

José María Yturralde - Eclipse (1996)

E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (João 1:5)

O acto da conversão está longe de pertencer apenas ao domínio da religião. Ele é inerente a toda a vida espiritual do homem. Thomas S. Kuhn vê a transição, na ciência, de uma matriz disciplinar a outra como uma conversão, pela qual o cientista passa a olhar a realidade e a ciência de uma outra perspectiva. Encontramos isso também na arte e até em fenómenos mais prosaicos como a política. A conversão é sempre a adopção de um outro ponto de vista. Ela não é, contudo, apenas isso. É também o desfazer de um eclipse, a remoção de um objecto opaco que oculta a fonte luminosa. Não se trata apenas de olhar de outra maneira. A própria luz também é outra. Toda a vida espiritual do homem começa - e continua - com o enfrentar de um eclipse, um eclipse onde um ego obscurece a luz que vem do ipse, de si mesmo.