sexta-feira, 24 de maio de 2019

Haikai urbano (47)

Eliot Elisofon, Signs in Kyoto, 1961

Signos e sinais,
na fria chuva de Quioto:
Vida e mistérios.

domingo, 19 de maio de 2019

A concha de Penélope

Frank Eugene, Miss Gladys Lawrence - The Seashell, 1910-13

Ela transportava sempre aquela concha consigo, levando-a, uma vez por outra, ao ouvido. Então, ficava assim durante longos momentos. Depois, como se orasse, apertava-a nas mãos. De seguida, pousava-a e retomava o trabalho, aquele que haveria de desfazer durante a noite. Interrompia-o para sintonizar de novo o mar naquele objecto mágico. Sempre que o fazia, uma sombra cobria-lhe o rosto e uma dor varava-lhe o peito. Também no dia em que, irreconhecível, Ulisses desembarcou em Ítaca, ela levou a concha ao ouvido. O que escutou deu-lhe tal alegria que deixou que o objecto se desprendesse das mãos e se estilhaçasse nas duras lajes do palácio. O mar deixara de lhe falar.

sexta-feira, 17 de maio de 2019

Poesia do Viandante (720)

Gerhard Richter - Abstraktes Bild (1995)

720. um amor de água

um amor de água
dobrado
na dádiva da dor
o carvão do crime
resgatado
à erva esconsa
um símbolo
cindido entre
o gelo e o júbilo

(26/12/2016)

domingo, 12 de maio de 2019

Impressões 30. Estátuas frias

Fernand Khnopff, Memories, 1889

Imóveis, as jogadoras descansam dos acasos do jogo. Olham-se e não falam. Guardam os segredos no cofre-forte da discrição. O que sabem só a cada uma diz respeito. Esperam apenas que o tempo passe e se tornam pedra, estátuas frias na turbulência do tempo.

sábado, 11 de maio de 2019

O sal do silêncio (15)

Max Baur, Park Sanssouci, Potsdam

Piso as folhas caídas da árvore do Outono, oiço-as ranger sob o peso dos meus pés e caminho desvalido como um eremita perdido no crepúsculo da grande cidade. Sigo o caminho que não leva a lado nenhum. Sou cego e guio-me a mim mesmo e espero, no ventre dessa cegueira, a luz que me há-de resgatar do império da noite.


sexta-feira, 10 de maio de 2019

Haikai do Viandante (369)

Tamamura Kozaburo, Mount Fuji from Takaido Station, ca 1900 

O monte ao longe
espera-te em silêncio.
Vai, vai devagar. 

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Meditação Breve (101) Tudo o que é grande

Hiroshi Sugitomo, Baltic Sea, near Rügen, Germany, 1996

Olhamos a vastidão do mar, o murmúrio do vento rente às aguas, a cor indecifrável que fere a memória. Tudo o que é grande reflecte o silêncio dos céus e aguarda o coração que lhe desvende o mais secreto dos segredos.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Poesia do Viandante (719)

James Juszczyk - Another Passage (1991)

719. passagem a passagem

passagem a passagem
percorro o caminho
do esquecimento
orlado por ervas
e uvas
tocado pelo vendaval
da memória
o som da sonora cegueira

(26/12/2016)

terça-feira, 7 de maio de 2019

O sal do silêncio (14)

William Henry Fox Talbot, A Scene in a Library, 1844

Parecem esquecidos, mas estão apenas à tua espera. Aguardam, pacientes e fiéis, que a solidão te chame para eles e, em silêncio, descubras o que te têm para dizer.

segunda-feira, 6 de maio de 2019

Haikai urbano (46)

Kurt Hielscher, Harbour, Hamburg, Germany, 1922

Nas águas do porto
há um sonho de viagens:
ir e não voltar.

domingo, 5 de maio de 2019

Diálogos morais 6. Tentações

Jack Delano, Union Station, Chicago, 1943​

- Aqui, sob a luz, estamos demasiados expostos.
- Não será melhor verem-nos? 
- Isso evitará tentações.
- E o melhor não é evitar a tentação?
- Não sou padre ou pastor. Pagam-me para apanhar quem se deixou tentar.

sábado, 4 de maio de 2019

Impressões 29. A luz que desce da voz


Canticles of Ecstasy, música de Hildegaard von Bingen. A luz que se desprende daquelas vozes ilumina a noite e um murmúrio clama que a Idade Média não pode ter sido um tempo de trevas, se havia quem cantasse assim. Deixo que as vozes me arrebatem, enquanto o coração sossega e descansa do calvário do dia.

sexta-feira, 3 de maio de 2019

Poesia do Viandante (718)

José María Yturralde - Ad Quadratum (1990)

718. a escura esquadria

a escura esquadria
do quadrado
sombra
de sílabas
na paisagem vermelha
tão verde
dos campos
incendiados
no solstício de verão

(26/12/2016)

domingo, 21 de abril de 2019

O sal do silêncio (13)

Hippolyte Flandrin, The Resurrection

Não apenas o sal habita no silêncio, mas também o fermento. É ali, no silêncio sepulcral que habita o centro do mundo, que fermenta vida, corroendo os grilhões de aço da morte. Chegada a hora, ela irrompe banhada pela luz do segredo. Em cada irrupção há um ressurgir no qual, sob o véu silente, se escuta a música  eterna das esferas celestes.

sábado, 20 de abril de 2019

Diálogos morais 5. Partilha

Stanley Kubrick, Life and Love on the New York City Subway, 1946

- Contem-te, está ali um homem a dormir. Se ele acorda...
- Não acorda, está morto.
- Que horror. Não brinques com coisas sérias.
- Horror seria ele estar vivo e ter de te partilhar com ele.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Poesia do Viandante (717)

Meyer Schapiro - Surreal Rocks (1960)

717. rochas gânglios

rochas gânglios
de pedra
na crosta da terra
inflamações
a arder
na planície
espelhos
espalhados
na cinza do mar

(25/12/2016)

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Pintura e haikus (9)

Chaim Soutine, Cagnes Landscape with Tree, 1923-24

Paisagens de verde
sombreadas de amarelo.
Luz da Primavera.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

O sal do silêncio (12)

Paul Wolff, Housewife, grass-bleaching the linen, 1930s

Há gestos, tão vivos, congelados no passado que parecem querer soltar-se das férreas grades do calendário, para abraçarem o húmus da terra e entregarem-se ao ardor que, na maresia das manhãs, se desprende já dos raios solares. 

terça-feira, 16 de abril de 2019

Diálogos morais 4. Prazeres

Irving Penn, Man Lighting Girl’s Cigarette (Jean Patchett), New York, 1949

- Obrigada.
- É um prazer.
- Compreendo. Tem prazer no que me faz mal, no que me pode matar.
- E que prazer poderia eu ter no que lhe fizesse bem?

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Meditação Breve (100) Abandono

Foto de Graciela Iturbide

Quando alguém se sente chamado para um território inóspito, então é porque chegou a hora do abandono. Não de se sentir abandonado, mas de abandonar-se, para que o vento que sopra onde quer lhe possa falar e indicar-lhe o caminho que o espera.

domingo, 14 de abril de 2019

Poesia do Viandante (716)

Meyer Schapiro, Landscape, 1940

716. paisagens de granito

paisagens de granito
e grafite
rasgadas na cera
dos campos
paisagens húmidas
untuosas
sedadas no sono
da noite
paisagens de poeira
e seixo
vidradas no visco
de um verso

(25/12/2016)

sábado, 13 de abril de 2019

Impressões 28. Larvas na noite

Yale Joel, Night traffic on the Major Deegan Expressway. New York, June 1958

Os carros deslizam como larvas no território da noite. Abrem valas de luz por onde caminham em busca de um destino, dessa morada onde o silêncio lhes paga cada pergunta com o mistério de uma resposta.

sexta-feira, 12 de abril de 2019

Micronarrativa (15) Indecisão

Elliott Erwitt, Jacksonville, Florida, 1968

Uma inquieta presença insinuava-se à entrada. A sua vida fora sempre um lago de indecisão. Chegava ali e hesitava longamente se devia entrar ou ir-se embora. Acabava sempre por se ir. No dia que entrou, a sua mão ficou agarrada longas horas à porta entreaberta, como se fosse possível apagar o precipitado passo.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Adeus

Fotografia de Jacques Henri Lartigue

Sentava-me ao lado dela e observávamos o oceano, comentando os veraneantes, a ondulação, o destino dos barcos que passavam. Por vezes, convidava-a a jantar, mas ela nem sempre acedia, protestando cansaço ou algum incómodo ocasional. Era uma amizade intermitente. Num dia à tarde, sentados um ao lado do outro, brilhavam-lhe os olhos. Disse-me: acabou a minha pena, posso voltar para casa. Olhei-a estupefacto. Pena? Sim. Venha comigo. Pegou-me na mão e levou-me para o mar. Dentro de água beijou-me longamente. Depois, dando umas braçadas, disse-me adeus. Volto para casa, acrescentou. E enquanto se afastava mar adentro, soltou um canto belíssimo. Quando se calou, o seu silêncio quase me enlouqueceu.

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Diálogos morais 3. As trevas e a luz

William Holman Hunt, The Lantern-Maker's Courtship, 1854-56

- Ah essa boca velada de negro, como eu...
- Contém os teus desejos, os meus lábios...
- Os teus lábios cerra-os tão terríveis trevas.
- E para que te serve a luz de uma lanterna, se não os iluminas?

terça-feira, 9 de abril de 2019

Poesia do Viandante (715)

Antonio Clavé - 23-11-75 (1975)

715. leves os ladrilhos

leves os ladrilhos
da casa latem
latejam
tocados
na porosidade
pura da pedra
pela límpida
luz do ladrilhador

(25/12/2016)

segunda-feira, 8 de abril de 2019

O sal do silêncio (11)

Chin-San Long, Tree with cranes, 1966

Expectante, a ave olha o rumor do silêncio, enquanto o tempo, levedado pela brisa, passa em direcção ao futuro. Na ramagem das árvores, sob um céu anónimo, esconde-se a esperança e a mão que há-de pintar de cinza a sombra efémera que a luz sempre consigo traz.

domingo, 7 de abril de 2019

Impressões 27. Esfinge

Anónimo, Sphinx, Egypt, 1890s

Olho e reconheço-me na imagem que a esfinge me devolve. Se pergunto quem sou, nunca oiço a resposta, apenas o ecoar da pergunta no impenitente vazio do deserto chega aos meus ouvidos, devolvendo-me a angústia da pergunta e a incerteza que me habita. 

sábado, 6 de abril de 2019

Haikai do Viandante (368)

George Inness, A Passing Shower, 1860

Chuva passageira
desce dos céus de Abril.
Balem os cordeiros.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Diálogos morais 2. Eu não desisto

Jean Dieuzaide, Aveiro, Portugal, 1954

- Parece uma bola de luz. Quero-a.
- Não podes querer o Sol. Está longe, é muito grande e quente.
- Não interessa. Eu não desisto.
- Não desistes? Como assim?
- Vou crescer, vou ser maior que tu e então, este barco maior que o sol leva-me até ele. Quando lá chegar, mergulho-o na água e ele arrefece. Então trago-o comigo. Eu não sou como tu. Eu não desisto.