sábado, 11 de novembro de 2017

Poemas do Viandante (660)

Jesús María Cormán - White event N.º 8 (2000)

660. espuma escorre

espuma escorre
tocada
pelo carbúnculo
do desejo
fio de água fiado
na roca do oceano
as mãos vazias
e
quase puras
tão puras as mãos do tempo

(16/12/2016)

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Evocações

Deborah Turbeville - Isabella at École Des Beaux Arts, Paris, 1977

Quando o espírito mergulha na evocação, como acontece nesta fotografia de Deborah Turbeville, nunca é com a finalidade de rememorar o passado ou, tão pouco, de o comemorar. A evocação não é um jogo memorial mas, antes, uma reconfiguração de elementos dispersos, que, de súbito, se unem para nos darem a ver uma presença inédita num presente nunca vivido. Evocar não é convocar o passado mas promover o presente.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Intimidade

Giorgio de Chirico - Entrevista (1927)

Naquilo a que se dá o nome de intimidade não existe apenas, e ao contrário do que muitas vezes se pensa, o que é mais próprio, autêntico e verdadeiro. A intimidade é um espaço de negociação entre o público e o privado, entre os desejos e afecções subjectivas e as convenções exteriores. A fronteira entre o íntimo e o público é de tal maneira porosa que, muitas vezes, se perde a noção daquilo que se deve reservar e aquilo que se deve ostentar. O segredo não é intrínseco à intimidade, mas resulta de uma conduta que exige esforço e persistência.

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Vórtice

Francesca Woodman - Space², Providence, Rhode Island, 1975-1978

Tudo começou com uma pequena turbulência. Inexplicavelmente, aquele ponto do quarto parecia atravessado por correntes de ar vindas não sei bem de onde. Em vez de abrandarem e de desaparecerem, foram-se tornando mais vivas, até que um vórtice silencioso rodopiava à minha frente. Primeiro, foi uma sombra. Depois, qualquer coisa, talvez um espírito, ganhou contornos. Com o rodopiar, esses contornos preencheram-se. Eram um corpo, o teu corpo, ainda jovem e belo. Perguntei-te o nome, mas não sabias falar. Tive de te ensinar, para que me pudesses contar a tua história e falar desse lugar de onde fugiste naquele dia nunca por mim lamentado.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Haikai urbano (25)

Deborah Turbeville - Vera Abrusova, Stroganov Palace, 1996

Uma borboleta
sonha sombra e solidão.
Um rumor de ruína.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Poemas do Viandante (659)

Willem De Kooning -  Puerta al río (1960)

659. o vístula e o danúbio

o vístula e o danúbio
são rios
e valsam na calçada
a valsa dos
afogados
pedra ante pedra
bate a água
no barco
a balançar ao desvario
a rugir de
margem em margem

(15/12/2016)

domingo, 5 de novembro de 2017

Meditação breve (56) Fotografia

Kurt Hielscher - Albarracín, Spain, 1925

O que é uma fotografia? Uma fotografia é um desejo. O desejo de sair do tempo e entrar na eternidade. Eternamente, o cigarro fica suspenso, na mão daquele homem, sem chegar aos lábios. Eternamente, aquele rapaz e aquela mulher ficam sob o arco que anuncia uma entrada. Eternamente, aquela casa... Um desejo, por intenso que seja, não é, contudo, a realidade. A fotografia é um desejo nunca consumado, uma travessura de Eros, esse deus irrequieto e zombador.

sábado, 4 de novembro de 2017

Haikai urbano (24)

Ernst Ludwig Kirchner - Prostituta che si offre (1914)

Na rua se oferece
a quem se vende comprando.
Sonoro silêncio.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Naturezas mortas

Frances Murray - Rebecca-Tree, 1992

Não posso dar melhor conselho. Devemos ter cuidado com o que nos fascina. O fascínio é sempre a contraparte de um desejo. Um dia, ao maquilhar-se, ela notou um insólito risco ondulado no queixo. Tentou apagá-lo. Em vão. Conformou-se, quase de imediato, não sem secreto júbilo. Algum tempo depois, aquilo que parecia o desenho de um tronco cresceu desse traço até ao lábio. Aguardou com ânsia o que viria a seguir. A realidade não lhe frustrou a expectativa. Na pele do rosto, nasceram os ramos de uma árvore e expandiram-se para além dos contornos. Nunca o lamentou. Olhava-se ao espelho e não queria crer, ela, a quem sempre as naturezas mortas fascinaram, tinha alcançado a verdade escondida no fundo do seu desejo. Quando chegava a Primavera, cobria-se de folhas e todo o seu corpo irradiava luz. Cheguei a desejá-la.

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

A ponte do diabo

Charles Clifford, Devil’s Bridge, Martorell, Catalonia, 1860–61

A história é essa, tem toda a razão. Sei-a desde a infância. Ouvi mil vezes o motivo por que lhe chamam a ponte do diabo. A narrativa perde-se na noite medieval. Fascinou-me, é verdade, mas acabou por deixar de me interessar. Se alguém me pergunta a razão do nome da ponte, nunca conto a história original. Invento sempre uma nova explicação. Não pense que o faço por desprezo pela verdade. Pelo contrário, é porque estou comprometido com ela que invento as histórias. Não percebe? Não é difícil, se imaginar as mil maneiras que o diabo tem para fazer a ponte para o coração dos homens. Nunca falo da mesma ponte, embora ela seja sempre a mesma.