segunda-feira, 31 de julho de 2017

A luz

Odilon Redon - L'Homme ailé ou L'ange déchu (1880)

A ambiguidade do título do quadro de Redon, independentemente das razões que assistiram ao pintor, marca um dos traços da nossa cultura. O desejo de se elevar e o temor de cair. O destino tanto de Ícaro como do anjo decaído está relacionado com a luz. Um aproxima-se tanto da fonte da luz, o Sol, que as asas derretem. Outro, Lúcifer, o anjo da luz, não resiste à desmedida de ser portador da luz. Em cada uma destas figuras, o espírito ocidental exprimiu a dificuldade de se relacionar com a Luz. Não por acaso, João, o evangelista, escreveu: a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.

domingo, 30 de julho de 2017

Um Cristo crucificado

Odilon Redon - Crucificação (1910)

Olhamos o quadro de Odilon Redon e, perante a data, perguntamos, perplexos, o que faz ele ali. Ali não se trata do Museu de Orsay onde se encontra, mas de 1910. Depois do Iluminismo, do positivismo e dos diversos materialismos, por que razão tornar a apresentar um Cristo crucificado? Se nos deixarmos instruir pela pintura, talvez seja possível compreender alguma coisa. O que vemos é a solidão e o abandono do Cristo. Elas são o negativo que permitiram construir o mundo que ainda é o nosso. Pensa-se muitas vezes que a grande vantagem que o Ocidente construiu se deve à ciência e à técnica. Isso, porém, não passa de uma aparência. A vantagem que nos permitiu inclusive chegar à ciência e à técnica funda-se toda ela nessa consciência difusa de que a solidão e o abandono experimentados pelo Cristo na cruz são a nossa verdadeira condição. Sobre este alicerce construímos o resto. Umas vezes para o bem, quando aceitámos a verdade do homem; outras para o mal, quando o medo foi mais forte do que a aceitação.

sábado, 29 de julho de 2017

Haikai do Viandante (329)

Modesto Ciruelos - Abstracción (1975)

terras do levante
paisagens de fogo e mágoa
as cigarras cantam

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Os músicos ambulantes

Tomislav Peternek, Fajront  (Closing time), Fruska Gora, 1962

Quando não chovia, punham-se a caminho. De onde vinham? Há quem diga que não vinham de lado nenhum. Surgiam do nada, mas a opinião é incerta. Nunca ninguém os ouviu tocar. Não há notícia, por outro lado, de terem sido avistados sem ser a arrastar os pesados contrabaixos. Caminhavam, iam de aldeia em aldeia. Evitavam as cidades. Se os cumprimentavam, sorriam, inclinavam a cabeça e seguiam. O nome deles? Não conheço quem o saiba. Talvez uma semana depois de passarem, ouvia-se um diálogo musical entre dois contrabaixos, mas não se via ninguém. Eles? Não me parece. A essa mesma hora eram avistados demasiado longe para que aquela música viesse dos seus instrumentos.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Poemas do Viandante (640)

Eugène Leroy - Mer sombre (1991)

640. o mar é uma flecha

o mar é uma flecha
de sombra
um dardo de dor
na fímbria
do coração
dardeja na pedra
frecha nos campos
adormece
no sal da melancolia

(12/12/2016)

Vida espiritual (2)

Erik Petersen, Copenhagen, 1940-1945

É surpreendente o que a fotografia tem para nos ensinar sobre a vida espiritual. Como no post de ontem, também aqui é acentuada de forma deliberada uma certa qualidade inerente a qualquer fotografia. O que nos é dado a ver, pela escolha de um ângulo inabitual, é que toda a fotografia é perspectivística. Ora não é apenas o olhar que é perspectivístico. Qualquer actividade espiritual do homem implica sempre esse perspectivismo, essa negação de uma apreensão absoluta e de uma posição absoluta. A vida espiritual começa com a compreensão de que o caminho é singular, deliberadamente singular, e um processo de construção de uma singularidade. Aquela que somos.

terça-feira, 25 de julho de 2017

Vida espiritual

Rodney Smith - Skyline, New York, 1992

O que nos ensina esta fotografia sobre a vida do espírito? Para o percebermos é necessário compreender o que ela faz. Toda a fotografia é um corte no tempo, um momento que foi subtraído ao fluxo da duração. Ao olhar a fotografia, percebe-se de imediato que os figurantes estão a encenar esse momento excluído do decurso da temporalidade. Aquilo que qualquer fotografia faz espontaneamente esta fá-lo deliberadamente, como se retornasse sobre si mesma e transformasse a inocência original e espontânea numa virtude adquirida por um longo exercício de ascese. A vida espiritual é essa ascese para tornar deliberado aquilo que um dia foi espontâneo.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Haikai do Viandante (328)

Kees Scherer, Cannes, 1954-1959

o mar de agosto
envolto em areia e espuma
sol e solidão

domingo, 23 de julho de 2017

As Cárites

Sarah Moon - Invite, front (1977)

Sei, claro, o nome delas, mas isso servir-lhe-ia de alguma coisa? Contemple-as, apenas. Houve um tempo em que as viam nuas e entregues à dança. Pode ser que tenham vivido assim, mas também pode ser que isso fosse apenas o desejo de quem julgou vê-las. Hoje, porém, são circunspectas. Uma, inquiridora, olha o mundo como se quisesse interrogá-lo para descobrir algum crime. As outras olham para dentro de si mesmas. O que procuram? Diz-se que elas traziam a alegria, a claridade e o florescimento ao mundo. Talvez procurem esse mundo que se perdeu ou queiram apenas que as esqueçamos no esquecimento que os nossos dias sobre elas fizeram cair.

sábado, 22 de julho de 2017

Poemas do Viandante (639)

Eugène Leroy - Le Petit Arbre (1971)

639. a árvore irrompe da terra

a árvore irrompe da terra
lança os ramos
sobre o ruído
da floresta
e aguarda
a queda dos frutos
no sobressalto
das folhas
escritas
pela mão do abandono

(12/12/2016)