sexta-feira, 28 de julho de 2017

Os músicos ambulantes

Tomislav Peternek, Fajront  (Closing time), Fruska Gora, 1962

Quando não chovia, punham-se a caminho. De onde vinham? Há quem diga que não vinham de lado nenhum. Surgiam do nada, mas a opinião é incerta. Nunca ninguém os ouviu tocar. Não há notícia, por outro lado, de terem sido avistados sem ser a arrastar os pesados contrabaixos. Caminhavam, iam de aldeia em aldeia. Evitavam as cidades. Se os cumprimentavam, sorriam, inclinavam a cabeça e seguiam. O nome deles? Não conheço quem o saiba. Talvez uma semana depois de passarem, ouvia-se um diálogo musical entre dois contrabaixos, mas não se via ninguém. Eles? Não me parece. A essa mesma hora eram avistados demasiado longe para que aquela música viesse dos seus instrumentos.

quarta-feira, 26 de julho de 2017

Poemas do Viandante (640)

Eugène Leroy - Mer sombre (1991)

640. o mar é uma flecha

o mar é uma flecha
de sombra
um dardo de dor
na fímbria
do coração
dardeja na pedra
frecha nos campos
adormece
no sal da melancolia

(12/12/2016)

Vida espiritual (2)

Erik Petersen, Copenhagen, 1940-1945

É surpreendente o que a fotografia tem para nos ensinar sobre a vida espiritual. Como no post de ontem, também aqui é acentuada de forma deliberada uma certa qualidade inerente a qualquer fotografia. O que nos é dado a ver, pela escolha de um ângulo inabitual, é que toda a fotografia é perspectivística. Ora não é apenas o olhar que é perspectivístico. Qualquer actividade espiritual do homem implica sempre esse perspectivismo, essa negação de uma apreensão absoluta e de uma posição absoluta. A vida espiritual começa com a compreensão de que o caminho é singular, deliberadamente singular, e um processo de construção de uma singularidade. Aquela que somos.

terça-feira, 25 de julho de 2017

Vida espiritual

Rodney Smith - Skyline, New York, 1992

O que nos ensina esta fotografia sobre a vida do espírito? Para o percebermos é necessário compreender o que ela faz. Toda a fotografia é um corte no tempo, um momento que foi subtraído ao fluxo da duração. Ao olhar a fotografia, percebe-se de imediato que os figurantes estão a encenar esse momento excluído do decurso da temporalidade. Aquilo que qualquer fotografia faz espontaneamente esta fá-lo deliberadamente, como se retornasse sobre si mesma e transformasse a inocência original e espontânea numa virtude adquirida por um longo exercício de ascese. A vida espiritual é essa ascese para tornar deliberado aquilo que um dia foi espontâneo.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Haikai do Viandante (328)

Kees Scherer, Cannes, 1954-1959

o mar de agosto
envolto em areia e espuma
sol e solidão

domingo, 23 de julho de 2017

As Cárites

Sarah Moon - Invite, front (1977)

Sei, claro, o nome delas, mas isso servir-lhe-ia de alguma coisa? Contemple-as, apenas. Houve um tempo em que as viam nuas e entregues à dança. Pode ser que tenham vivido assim, mas também pode ser que isso fosse apenas o desejo de quem julgou vê-las. Hoje, porém, são circunspectas. Uma, inquiridora, olha o mundo como se quisesse interrogá-lo para descobrir algum crime. As outras olham para dentro de si mesmas. O que procuram? Diz-se que elas traziam a alegria, a claridade e o florescimento ao mundo. Talvez procurem esse mundo que se perdeu ou queiram apenas que as esqueçamos no esquecimento que os nossos dias sobre elas fizeram cair.

sábado, 22 de julho de 2017

Poemas do Viandante (639)

Eugène Leroy - Le Petit Arbre (1971)

639. a árvore irrompe da terra

a árvore irrompe da terra
lança os ramos
sobre o ruído
da floresta
e aguarda
a queda dos frutos
no sobressalto
das folhas
escritas
pela mão do abandono

(12/12/2016)

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Modelos

Deborah Turbeville - From the Valentino Collection, 1977

A moda é impensável sem os modelos e os desfiles que estes protagonizam. Tudo isto está intimamente ligado à transitoriedade. Dura uma estação e torna-se de imediato passado, pois qualquer coisa de novo está a irromper e a abrir a clareira da próxima colecção. Os fogos de artifício que rodeiam o fenómeno ocultam, contudo, a presença da eternidade no transitório de uma roupa. Mais do que manequins, suportes de vestuário ou calçado, os modelos são arquétipos espirituais, uma espécie de ideias platónicas, eternas e imutáveis, de cuja natureza os mortais pretendem participar. Vestidos ou sapatos não são objectos utilitários, mas o elemento metafísico que estabelece essa participação. 

quinta-feira, 20 de julho de 2017

O anjo da juventude

Chris Killip - Youth on Wall, Jarrow, Tyneside, 1976

Ao ver o murete, sentou-se e encostou o dorso à parede. Então flectiu as pernas e apoiou nelas as mãos, e nestas descansou o rosto. Vinha de longe, foi o que pensei. Tal era o ar exausto e a angústia que tentava ocultar. Por vezes, erguia a cabeça e perscrutava a rua, mas logo perdia o interesse e voltava-se para a dor que o animava. O que lhe aconteceu? É isso que quer saber? O que me disseram eu não o vi. Não o posso assegurar, apesar da fonte ser credível. Levantou-se e nas costas abriram-se duas asas. Voou para longe. Era um anjo, asseveraram-me sem se rirem, o anjo caído da juventude.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Haikai urbano (17)

Berenice Abbott - Nightview, New York, 1932

montanhas de luz
na invernia da noite
cidade sem sono