segunda-feira, 10 de abril de 2017

Uma carta

Johannes Vermeer - Woman Reading a Letter (1663)

Leio e releio. E o que posso dizer? Conto a distância que nos separa, essa distância que vem através das letras com que as palavras são compostas, para nos sublinharem tudo o que nos afasta, mesmo que o que nos afasta seja a lonjura que há entre ti, aí tão longe, e mim. Com estas palavras descubro o espaço e com ele componho o teu exílio e a minha solidão. Chega um papel tracejado a tinta e os cães da saudade, em vez de se calarem, ladram desvairados dentro do peito. Leio e releio e não sei o que possa escrever, não sei como açaimar os animais que me devoram a noite. Leio e rasgo a carta. Talvez assim possa esquecer-me de mim.

domingo, 9 de abril de 2017

No boudoir

Leni Junghans - In the boudoir (c. 1940)

Não, não. O que me apetece mesmo é despir-me, livrar-me da roupa, tirar os sapatos. Nua, completamente nua. Seria engraçado se aparecesse na recepção sem roupa. Um êxito. Correriam a cobri-me? Arrastar-me-iam dali para fora? Seria uma boa ideia. Já não suporto aquela gente e tenho de sorrir, quando me apetece fazer caretas. Teriam a coragem de fingir que estava vestida? Quem sabe? Mostrar-lhes os seios, os pêlos púbicos, o corpo na pura luz. Obrigá-los a fingir que não viam o que viam. Obrigá-los a disfarçar o desejo. Cegá-los. Se tivesse coragem, talvez chegasse a ser feliz.

sábado, 8 de abril de 2017

Meditação breve (24) - Velocidade

Autor desconhecido - Race car mechanic (1958 )

É indiferente se vivemos a vida segundo o signo da imobilidade ou o da grande velocidade. Não somos nós que passamos pela vida. É ela que passa por nós e, inexoravelmente, nos abandona, independentemente da velocidade com que nos deslocamos nela.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Poemas do Viandante (622)

Juan Soriano - Fuegos de artificio (1958)

622. o poeta é um fogo

o poeta é um fogo
que arde
sem se ver
é ferida que finge
tão descontente
que chega a fingir
que é amor
a dor que desatina
e não se sente

(09/12/2016)

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Estar lá

Joshua Benoliel - Praça D. Pedro IV (1910)

Não sei se alguma vez terá feito a experiência. A mim acontece-me sempre que vejo fotos ou mesmo pinturas antigas. Reconheço de imediato o cenário e até as pessoas não me são estranhas. Apossa-se de mim a certeza - inabalável, pode crer - de que as conheço de vista, que passei por elas vezes sem fim. Tem razão, a diferença de épocas não me permite tê-las conhecido, mas está convencido de que isso é razão suficiente para contrariar uma convicção tão íntima e tão profunda? Sim, eu ainda não tinha nascido, mas estava lá, juro-o, quando o fotógrafo montou a máquina e fez a fotografia. Não estamos sempre lá, seja onde for e seja quando for?

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Meditação breve (23) - Deslizar

Frederick Schoch, City Park , Ice Rink, Budapest XIV, Hungary, 1907.

A vida é um caminho, diz-se. Um caminho por onde andamos com passos trémulos. Por vezes, são lentos esses passos. Outras vezes, imitam o galope do cavalo. Importante seria aprender a deslizar suavemente por ela, mesmo que grandes fossem os obstáculos a vencer e as dores a suportar.

terça-feira, 4 de abril de 2017

A rua esquecida

Josef Sudek - Forgotten street (1930)

Era lá que escondíamos os nossos sonhos. Como sabe, todos temos tendência para sonhar. O pior é a realidade. Raramente está disposta a abrir as portas para que os nossos mais autênticos devaneios entrem por ela. Então, pegávamos nos sonhos e íamos escondê-los, talvez por vergonha, naquela rua esquecida, por onde quase ninguém passava. Ficavam lá adormecidos, ao deus-dará, e não havia quem os quisesse roubar. Quando um de nós morria, os outros pegavam nos seus sonhos e, naquelas velhas carretas, levavam-nos a enterrar junto com o morto. Foi assim que os meus sonhos desapareceram.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Haikai Urbano (8)

André Kertész - Ballet, New York (1938)

cisnes na cidade
dançam na cinza das ruas
sombra sobre o lago

domingo, 2 de abril de 2017

Poemas do Viandante (621)

Maria Helena Vieira da Silva - Egipto (1948)

621. sonho um sonho

sonho um sonho
de pirâmides
e águas do nilo
sonâmbulo
caminho
nas areias
e traço com as mãos
vazias
rotas no deserto
e nas ervas do egipto

(09/12/2016)

sábado, 1 de abril de 2017

Alienação

Harold Feinstein - Sharing a Public Bench (1949)

As grandes cidades são máquinas exuberantes de bulício e entusiasmo, onde o espírito se sente não apenas exaurido como, na verdade, estrangeiro. O negativo da condição citadina é o cansaço que despe os homens da sua humanidade e os encerra na penumbra que deles se apossou. A isso se deve chamar, com propriedade, alienação, esse sentimento de se sentir estranho no lugar onde se está e na pele em que se vive,