sexta-feira, 7 de abril de 2017

Poemas do Viandante (622)

Juan Soriano - Fuegos de artificio (1958)

622. o poeta é um fogo

o poeta é um fogo
que arde
sem se ver
é ferida que finge
tão descontente
que chega a fingir
que é amor
a dor que desatina
e não se sente

(09/12/2016)

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Estar lá

Joshua Benoliel - Praça D. Pedro IV (1910)

Não sei se alguma vez terá feito a experiência. A mim acontece-me sempre que vejo fotos ou mesmo pinturas antigas. Reconheço de imediato o cenário e até as pessoas não me são estranhas. Apossa-se de mim a certeza - inabalável, pode crer - de que as conheço de vista, que passei por elas vezes sem fim. Tem razão, a diferença de épocas não me permite tê-las conhecido, mas está convencido de que isso é razão suficiente para contrariar uma convicção tão íntima e tão profunda? Sim, eu ainda não tinha nascido, mas estava lá, juro-o, quando o fotógrafo montou a máquina e fez a fotografia. Não estamos sempre lá, seja onde for e seja quando for?

quarta-feira, 5 de abril de 2017

Meditação breve (23) - Deslizar

Frederick Schoch, City Park , Ice Rink, Budapest XIV, Hungary, 1907.

A vida é um caminho, diz-se. Um caminho por onde andamos com passos trémulos. Por vezes, são lentos esses passos. Outras vezes, imitam o galope do cavalo. Importante seria aprender a deslizar suavemente por ela, mesmo que grandes fossem os obstáculos a vencer e as dores a suportar.

terça-feira, 4 de abril de 2017

A rua esquecida

Josef Sudek - Forgotten street (1930)

Era lá que escondíamos os nossos sonhos. Como sabe, todos temos tendência para sonhar. O pior é a realidade. Raramente está disposta a abrir as portas para que os nossos mais autênticos devaneios entrem por ela. Então, pegávamos nos sonhos e íamos escondê-los, talvez por vergonha, naquela rua esquecida, por onde quase ninguém passava. Ficavam lá adormecidos, ao deus-dará, e não havia quem os quisesse roubar. Quando um de nós morria, os outros pegavam nos seus sonhos e, naquelas velhas carretas, levavam-nos a enterrar junto com o morto. Foi assim que os meus sonhos desapareceram.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Haikai Urbano (8)

André Kertész - Ballet, New York (1938)

cisnes na cidade
dançam na cinza das ruas
sombra sobre o lago

domingo, 2 de abril de 2017

Poemas do Viandante (621)

Maria Helena Vieira da Silva - Egipto (1948)

621. sonho um sonho

sonho um sonho
de pirâmides
e águas do nilo
sonâmbulo
caminho
nas areias
e traço com as mãos
vazias
rotas no deserto
e nas ervas do egipto

(09/12/2016)

sábado, 1 de abril de 2017

Alienação

Harold Feinstein - Sharing a Public Bench (1949)

As grandes cidades são máquinas exuberantes de bulício e entusiasmo, onde o espírito se sente não apenas exaurido como, na verdade, estrangeiro. O negativo da condição citadina é o cansaço que despe os homens da sua humanidade e os encerra na penumbra que deles se apossou. A isso se deve chamar, com propriedade, alienação, esse sentimento de se sentir estranho no lugar onde se está e na pele em que se vive,

sexta-feira, 31 de março de 2017

A queda do silêncio

Misonne Leonard - Impressionistic photography (1942)

Há imagens, como esta fotografia de 1942, que são símbolos visíveis do silêncio. Olhamos para ela e compreendemos, de imediato, que todos os  ruídos do quotidiano estão suspensos. Mas o ronronar da chuva e o barulho dos passos não são uma forma de ruído que desmente a imperatividade do silêncio? Não. O murmúrio da chuva e o chapinhar dos passos na terra são a forma como, naquela hora, o silêncio cai sobre os homens.

quinta-feira, 30 de março de 2017

Haikai Urbano (7)

Alfredo García Revuelta - Ciudad (1987)

torres sem memória
erguem-se frias e  letais
a cidade rosna

quarta-feira, 29 de março de 2017

No reino da imobilidade

Teresa Muñiz - Aunque se mueva es pura apariencia (1998)

Uma antiquíssima tradição filosófica ligou o movimento e a aparência. O real seria o imóvel, cabendo a mobilidade ao reino das aparências. A arte - desde a pintura à fotografia, passando pela escultura - não se cansou de manifestar contra-exemplos. Também as aparências são imóveis. Se o real e o aparente são imóveis, o que será o movimento? O cinema veio dar-nos, através do fotograma e da sua montagem, uma imaginativa resposta para o enigma do movimento. Ele não passa de uma sequência de imobilidades.