sexta-feira, 31 de março de 2017

A queda do silêncio

Misonne Leonard - Impressionistic photography (1942)

Há imagens, como esta fotografia de 1942, que são símbolos visíveis do silêncio. Olhamos para ela e compreendemos, de imediato, que todos os  ruídos do quotidiano estão suspensos. Mas o ronronar da chuva e o barulho dos passos não são uma forma de ruído que desmente a imperatividade do silêncio? Não. O murmúrio da chuva e o chapinhar dos passos na terra são a forma como, naquela hora, o silêncio cai sobre os homens.

quinta-feira, 30 de março de 2017

Haikai Urbano (7)

Alfredo García Revuelta - Ciudad (1987)

torres sem memória
erguem-se frias e  letais
a cidade rosna

quarta-feira, 29 de março de 2017

No reino da imobilidade

Teresa Muñiz - Aunque se mueva es pura apariencia (1998)

Uma antiquíssima tradição filosófica ligou o movimento e a aparência. O real seria o imóvel, cabendo a mobilidade ao reino das aparências. A arte - desde a pintura à fotografia, passando pela escultura - não se cansou de manifestar contra-exemplos. Também as aparências são imóveis. Se o real e o aparente são imóveis, o que será o movimento? O cinema veio dar-nos, através do fotograma e da sua montagem, uma imaginativa resposta para o enigma do movimento. Ele não passa de uma sequência de imobilidades.

terça-feira, 28 de março de 2017

Poemas do Viandante (620)

Alfredo Hlito - Efigie oscura (1979)

620. uma obscura efígie

uma obscura efígie
ergue-se
na parede da tarde
traz em si
o odor da sombra
e o eco
da luz eterna
que resplandece
num ramo de malvas

(09/12/2016)

segunda-feira, 27 de março de 2017

Meditação breve (22) - Reflexo

Bernard Eilers - Keizersgracht, Amsterdam (1908)

Olhar o mundo reflectido nas águas não nos dá a verdade desse mundo, mas abre-nos o horizonte para suspeitarmos que há outras formas de o compreender. O reflexo não é o sinal da verdade, mas a porta por onde o espírito pode entrar para suspender o hábito de ver as coisas tal como elas se deixam observar na ingenuidade dos nossos sentidos.

domingo, 26 de março de 2017

Haikai do Viandante (319)

JCM - Nuvens (2015)

céus em sobressalto
tingem de cinzento a tarde
água e solidão

A grande batalha

Yves Klein - La Grande Bataille

A grande batalha não é aquela que se trava com armas e que visa a morte do inimigo. A grande batalha dá-se no palco oculto de cada um. É o combate decisivo da guerra que se trava contra as próprias ilusões, com o desejo de irrealidade que habita o ser humano, com a cegueira e a surdez que tomaram conta de nós e que, na maioria das vezes, julgamos, com convicção quase invencível, que são a nossa mais autêntica realidade. A grande batalha é o combate decisivo pela verdade de si mesmo. 

sexta-feira, 24 de março de 2017

O meu lugar

Richard Sandler - Grand Central Terminal, NYC (1990)

Estou aqui, não sei bem onde. Todas estas sombras que se agitam, vão e vêm, como se esse fosse o seu destino. Passam por mim como se passassem por coisa nenhuma. Levitam. Não vejo chão onde possam pôr os pés. Que sítio é este? O relógio, desde que cheguei, marca a mesma hora. E cheguei há tanto tempo. Sussurros, de onde virão? Sussurros e nem mais um som. Olho, mas ninguém olha para mim. Peço ajuda? E se não me vêem? Para qualquer lado que me volte, as mesmas sombras, os mesmo sussurros sobre o silêncio, os mesmos ponteiros paralisados sobre o esmalte do mostrador. Será isto o inferno? Não, nele não há silêncio, mas também não é o céu. Estou aqui, não sei bem onde.

quinta-feira, 23 de março de 2017

Poemas do Viandante (619)

d'Agaggio - Eclosion printanière (1977)

619. eclodiu a primavera

eclodiu a primavera
nos bolbos
esquecidos
na friagem da terra
deslumbradas  infâncias
maquinam
homicídios de folhas
tortura de pétalas
a corola ardida
no ardor da morte

(08/12/2016)

quarta-feira, 22 de março de 2017

A rainha da noite

Jeanloup Sieff - Queen, London (1964)

Caminhava assim vestida pelo cais. A silhueta recortava-se na luz dos candeeiros e, nos homens que a viam, soltava-se um desejo intenso e inexplicável. Como sabe, são duros os homens do mar mas nunca nenhum se aproximou dela. Correram boatos. Seria louca, dizia-se. Outros apostavam que era o fantasma de uma rainha, cujo nome não recordo. Havia quem afirmasse que era a própria morte que meditava sobre quem levaria. O certo é que os homens enlouqueciam de desejo quando ela passava lenta e silenciosa. Olhavam-na fascinados. Não foram poucas as raparigas que, nos bordéis do porto, apareceram mortas nas noites em que ela vinha.