quarta-feira, 15 de março de 2017

Meditação breve (20) - Caricatura

Thomas Hart Benton - Burlesque (1922)

Na caricatura não há um realçar hiperbólico de certos traços de um indivíduo. Pelo contrário, só na caricatura uma subjectividade se apreende na sua verdadeira natureza, a qual é sempre e irremediavelmente caricatural. 

terça-feira, 14 de março de 2017

Meditação breve (19) - Poder da música

Oskar Kokoschka - O Poder da Música (1920)

O poder da música reside todo ele em ser um reflexo e uma reminiscência do silêncio.

segunda-feira, 13 de março de 2017

Poemas do Viandante (617)

Morgan Russell - Synchromy in Orange: To Form (1913-14)

617. o ofício dos anjos

o ofício dos anjos
tinge-se
de cores cantantes
e vacilantes hossanas
brotam em forma
de frio
no fogo laranja
na fogueira azul
no fogaréu vermelho
que cresce
na fímbria da flor

(08/12/2016)

sábado, 11 de março de 2017

Haikai Urbano (5)

Ángel Orcajo - Arquitecturas IV (1986)

impérios de vidro
em torres frias de metal
um anjo acordou

sexta-feira, 10 de março de 2017

A porta aberta

William Henry Fox Talbot - The Open Door (1844)

Em todos estes anos quase sempre vi a porta aberta e a vassoura encostada à ombreira, tal como as vê daqui. A casa parece imutável, conheço-a assim há mais de cinquenta anos, mas quando era criança os mais velhos diziam a mesma coisa. O tempo não passa por ela. É o que se diz. E ninguém se aproxima? Raramente. Conheci dois, com um intervalo de trinta anos, que se aproximaram e entraram. De ambas as vezes, as pessoas ouviram a porta bater e viram-na fechada durante semanas. Depois voltou a abrir-se. E eles? Ninguém os tornou a ver e não se encontraram voluntários para os ir procurar.

quinta-feira, 9 de março de 2017

Poemas do Viandante (616)

Javier Calvo - Itinerario que conduce al invierno (1974)

616. caminhos de inverno

caminhos de inverno
escadas de musgo
e terra
batidos pela chuva
do lírio de bronze
a arder
no húmus da madrugada

(08/12/2016)

quarta-feira, 8 de março de 2017

Meditação breve (18) - Noite

JCM - Anoitecer em Torres Novas (2016)

O homem não anoitece, nasceu já noite cerrada. Nele não há crepúsculos. Por vezes, uma súbita luz ilumina-o, mas isso é uma dádiva para que possa suportar sem desfalecer a noite que é.

terça-feira, 7 de março de 2017

Desejo

John McKirdy Duncan - Pensive (1920)

A que lugar pertenço? À terra ou ao mar? Quando chegam os dias de sol, tão poucos, felizmente, passeio pela praia e olho o mar. O azul das águas e o som das ondas acordam em mim uma estranha nostalgia, como se me segredassem que o meu reino não é a terra mas a água. Então, olho o azul marítimo e oiço uma voz. Diz-me: Vem. Espero-te há muito. E todo o meu corpo pede para entrar nas águas. Tremo e quando me dirijo para o mar uma gaivota grasna ou uma criança grita, por vezes é o latido de um cão. Então fico presa à terra, os pés incapazes de se mexer, até que a noite chega, o desejo se quebra e o corpo me leva para casa.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Haikai do Viandante (317)


nuvens sobre nuvens
anunciam a tempestade
silêncio de inverno

domingo, 5 de março de 2017

Graffiti

Brassaï - Graffiti, Paris (1944-45)

Há em muitos graffiti que poluem as paredes das nossas cidades uma revelação espiritual que raramente se tem em conta. Não me refiro aos que pretendem transmitir mensagem significativas e socialmente reconhecíveis, mas aos que desejam apenas exprimir, num gesto que derrama tinta sobre uma parede, uma emoção ou um sentimento. Traduzem um mal estar, uma opressão da esfera emotiva pela esfera significativa, uma impossibilidade de conferir sentido quando tudo parece entrar em derrocado. Resta então o grito silencioso jogado numa parede. De certa maneira, há um retrocesso, um recuo do campo da interacção comunicativa para o da mera expressão, mas esses mesmos graffiti mostram que o espírito, também ele, se sente preso nos ardis da semântica e nas regras licenciosas da gramática.