sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Exterior e interior

Alejandro Mesonero - Exterior - Interior

Uma das armadilhas da vida do espírito reside na oposição entre exterior e interior. Uma longa tradição, composta de múltiplos matizes, vê a vida espiritual como pura interioridade, como tendo a sua génese e o seu território na vida subjectiva. O exterior é sentido como uma ameaça a esse paraíso de onde brotaria a criatividade e a espiritualidade humanas. Exterior e interior, contudo, definem-se um pela relação com o outro, o que em vez de os tornar opostos mostra-os como complementares. Não há vida do espírito sem esse imenso território exterior onde o espírito se configura. Não há mundo sem um espírito que lhe dê figura e, pela sua actividade, sentido. O espírito não é outra coisa senão aquilo que supera a diferença entre o exterior e o interior e, estando neles, está aquém e além deles.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Meditação breve (11) - Abismo

Alfons Mucha - El Abismo (1897-99)

Não, abismo não é o que nos espera após uma queda. Abismo é onde nos encontramos sem sabermos como sair.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Haikai Urbano (2)

Francisca Muñoz y Manuel Herrera - Apunte de viaje (1982-1997)

um comboio passa
entre a floresta de gruas
a cidade cresce

terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Chegar a casa

Gustave Guillaumet - El Desierto (1867)

Cheguei. Não temo o calor dos dias e o frio das noites? Não. Se procurasse abrigo e o conforto fosse fosse o fim, então ter-me-ia enganado e haveria razões para todos os tipos de temor. Cheguei sem esperar nada, sem pedir nada, sem querer receber coisa alguma. Deixei tudo para trás. Na verdade, não deixei grande coisa. Trouxe-me a mim, pois ainda não sei como me deixar também de lado. Contemplo a vastidão do deserto e sinto-me um grão de areia entre miríades de grãos de areia. Canto sob o sol e espero a noite. Cheguei a casa.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (609)

Eduardo Gruber - ¿Cáctus? (1996)

609. um cacto cresce

um cacto cresce
no furor
do deserto
manso como a cal
e gangrena
glóbulo a glóbulo
grão a grão
na arenosa areia

(07/12/2016)

domingo, 5 de fevereiro de 2017

Meditação breve - 10. Sono

Lucien Freud - Sleeping nude (1950)

O sono não é apenas uma forma de retemperar forças e de devolver ao corpo o vigor que a vigília lhe roubou. O sono é um protesto. Um profundo protesto contra a realidade e os imperativos, tão sem sentido, que ela traz a cada momento. Contra a usura da realidade, adormecemos.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

Meditação breve - 9. Horários

Lothar Schreyer - Horário (1921-22)

Submetemos a vida a horários para que nada de decisivo nos aconteça. Aquilo que importa, o mais decisivo, não tem hora nem dia. Acontece quando acontece. Chega sem se anunciar e parte sem se despedir.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Haikai Urbano (1)

Oscar Dominguez - La Rêve (1946-47)

sonhos geométricos
nascem na luz dos semáforos
um carro parou

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

As escadas

Ramón Pérez Carrió - Tres lecciones de tinieblas (2000)

Nunca ia a casa dela, mas ela visitava-me. Quando partia, um enorme vazio abria-se em mim. Aprendi a esperar e a espera era compensada. Poucos dias depois, ela voltava. Até que deixou de vir. Sem saber o que fazer, fui a sua casa. Ela olhou-me em silêncio. Não havia desaprovação nos olhos, mas abriu uma porta e começou a subir umas escadas. Seguia-a. Não sei quanto tempo subi aqueles degraus. Mais do que seria suportável por um ser humano. Nunca a vi, apenas ouvia, muito acima, os seus passos sobre a madeira. Exausto, sentei-me e adormeci. Quando acordei, estava deitado à sua porta, mas da casa, da sua casa, - disseram-me - não havia memória de que alguma vez fora habitada.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Poemas do Viandante (608)

Jacint Salvadó - Informel (1959)

608. castelos e constelações

castelos e constelações
chuva de orquídeas
no prado estelar
a pedra preta e
fulminante
nascida no casulo
da lira lívida
desta paisagem

(06/12/2016)