terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O reconhecimento

Maurice Denis - Os peregrinos de Emaús (1895)

O episódio dos discípulos de Emaús (Lucas 24:13-34) onde se narra a aparição de Cristo ressuscitado a dois discípulos é marcado por dois momentos ligados ao reconhecimento. O primeiro é o da ausência do reconhecimento, a incapacidade demonstrada em atentar na identidade do outro que segue caminho com eles. O segundo momento é o do reconhecimento dessa identidade. Esse reconhecimento, porém, não se dá numa situação trivial, como a conversação doutrinal da viagem, a qual se mostrou incapaz de gerar o reconhecimento, mas no momento em que é mobilizado um símbolo, a fracção e bênção do pão. 

É o símbolo que desencadeia o processo de reconhecimento, o que torna manifesto que todo o reconhecimento do outro, de qualquer outro, implica a suspensão da trivialidade e a mobilização de uma dimensão simbólica onde esse outro ganha sentido e valor. O paradoxal no texto é que o reconhecimento conduziu, de imediato, ao desaparecimento de Cristo. Reconhecer o outro não significa, então, prendê-lo numa esfera significativa, circunscrevê-lo em conceitos. Isso significaria reduzi-lo à trivialidade que se liga à significação usada na vida quotidiana. O outro, seja o Cristo ou o homem comum, pertence a uma dimensão simbólica e só esta permite conjugar o reconhecimento desse outro com o mistério, nunca desvendável, que o constitui.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Meditação breve - 8. Muros

Philip Guston - Ancient Wall (1976)

O corpo e o medo que o habita erguem muros. O espírito, na ânsia de um horizonte cada vez mais amplo, tem por missão destruí-los. Onde se ergue um muro é ainda o animal que que fala.

domingo, 29 de janeiro de 2017

Meditação breve - 7. A floresta

Arnold Böcklin - Floresta Sagrada (1882)

Não há florestas sagradas e florestas profanas. Todas as florestas são sagradas pois, ao ligarem o homem ao que há de mais arcaico e primordial, geram nele o espanto, o terror, o tremor e o temor que o sagrado, nas suas hierofanias, sempre provoca.

sábado, 28 de janeiro de 2017

Poemas do Viandante (607)

Jacint Salvadó - Informel (1959)

607. gárgulas gotejam

gárgulas gotejam
gotas de âmbar
e vinho
no vidro da tarde
na nuvem de melancolia
que desce
ferida e feliz
no ventre
onde gorgolejam
águas e luz

(06/12/2016)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Meditação breve - 6. Amnésia

Chema Cobo - Amnesia (1990)

A amnésia não é uma falta ou uma ausência, tão pouco uma perturbação. É a possibilidade da inocência.

A dádiva

Pierre Puvis de Chavannes - O pobre pescador (1881)

Espero. O barco preso à margem e, sob os meus olhos, a água passa, como por mim passam os anos. Antes - ah, como era ingénuo - dizia que tudo dependia da minha iniciativa. Não me faltava iniciativa, mas ela trouxe-me aqui. De pé, sobre o velho barco, sem exigir nada do mundo ou do rio. Eu sei que nascemos predadores, mas também nascemos ignorantes. O peixe virá se tiver de vir. Se vier é porque me pertence. Se não, é porque as águas ainda o reclamam como seu. Julgava que tudo dependia da conquista, hoje descobri que mesmo o conquistado é uma dádiva. A água passa e eu espero.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Haikai do Viandante (314)

Ovidio Murguía de Castro - Árboles en invierno

os dias de inverno
despem de folhas as árvores
sombra e escuridão

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O começo

Max Beckmann - Begining (1949)

O começo de algo ou de alguém nunca deixa de exercer sobre os homens um certo fascínio. Esse fascínio vem menos da novidade do que da possibilidade. Em cada começo há um mundo possível que permanece velado e misterioso. Que possibilidades se abrem ali? Como vai o espírito libertar-se do véu que o cobre? Terá forças para isso ou sucumbirá perante o peso da tarefa. Há começos gloriosos que conduzem a grandes derrocadas. Há também começos obscuros que, silenciosamente, se erguem à glória. Todo o começo, apesar de já conter em si tudo o que há-de vir, é incerto. O tempo se encarregará de transformar a incerteza na mais definitiva e irremediável das certezas.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

Poemas do Viandante (606)

Cruzeiro Seixas - Homem com pássaro (1958)

606. um pássaro poisa

um pássaro poisa
na cabeça 
curva
do homem
um ramo de giestas
tão vivas
tão cantantes
no silêncio ofegante
do odor vernáculo
da madrugada

(06/12/2016)

domingo, 22 de janeiro de 2017

Meditação breve - 5. Escrita

John Yardley - Choosing a book

A proliferação de livros de todo o género numa cultura como a ocidental é uma tentativa desesperada para colmatar o facto das duas personagens fundamentais e fundadoras dessa cultura, Sócrates e Cristo, não terem escrito uma linha. Tudo o que se escreve no Ocidente não passa de uma hermenêutica dessas ausências originais. E numa cultura cujos fundadores nada escreveram tudo pode ser dito e escrito.