sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Criadores de espantalhos

Arturo Souto Feijoo - Espantallo (1934)

Na ideia de espantalho pensa-se uma ilusão capaz de provocar medo e, desse modo, evitar que certo objectivo seja realizado. É um truque difundido há muito nos campos para protecção das culturas. O ser humano, contudo, é exímio em criar espantalhos para si mesmo, para que não seja confrontado com os objectivos que a vida lhe coloca e os tenha de realizar. Muitas vezes, o maior dos espantalhos, a grande ilusão, reside numa aparência de realização e na congratulação com aquilo que se costuma designar por triunfo na vida.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (600)

Zao Wou-Ki - 10-11-58/30-12-70

600. incandescências de areia

incandescências de areia
embutidas
no basalto do dia
desfiguram-se
entre a sépia
do deserto
e o cobalto que
desce na estátua
daqueles olhos

(05/12/2016)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

A mulher sentada

Henri Rousseau - River Bank (1890)

Sempre a vi ali. Sentada, contempla o rio. Por vezes, levanta a cabeça e observa o arvoredo ou o casario, como se esperasse algum sinal, mas logo o olhar volta para o fluxo das águas. Nunca ninguém lhe dirige a palavra. Quem por ali passa ignora-a ou, comecei a desconfiar, não a vê. O banco é só dela e, por instinto, suponho, todos respeitam a propriedade. Nunca sai dali? É isso que quer saber? Se se ouve o dobre a finados, ela levanta-se, entra no barco, pega nos remos e desaparece na curva do rio. Quando volta, senta-se e volta a fixar os olhos nas águas que passam. Em silêncio.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Das trevas

Albert Gleizes - O centro negro (1925)

Há duas espécies de trevas na vida do espírito. A primeira espécie é objectiva. Resulta da ausência absoluta de luz. São as trevas exteriores. A segunda é subjectiva. A luz é de tal maneira intensa que o espírito fica cego. São as trevas interiores. Às primeiras resta sempre a expectativa de que um foco de luz as ilumine. Às segundas há que aceitá-las e aprender a navegar na escuridão.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

A conversação

André Hambourg - La conversation (1929)

Na vida espiritual, tomada numa ampla acepção, a conversação, como outros aspectos da vida dos homens, apresenta um ambiguidade essencial. Tomada como bavardage, tal como os franceses a entendem, ela é um factor de inibição do caminho, uma distracção, no melhor dos casos, e uma alienação, nos piores. No entanto, é fundamental como o encontro entre espíritos, encontro onde se inter-animam e se fazem progredir no caminho. É também estrutural enquanto diálogo consigo mesmo, onde a conversação estabelece a ponte entre as partes cindidas do self e lhe permite aperceber de uma unidade anterior a toda a cisão que o espírito sofre no mundo.

domingo, 25 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (599)

Bill Jacklin - Duet (1971)

599. a sonora sombra

a sonora sombra
desce
pelas escadas
da noite
e pura paira
na fronteira
irisada
de um fruto
ferido por terra

(04/12/2016)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Haikai do Viandante (310)

Caspar David Friedrich - Mist (1807)

névoa na manhã
tudo se torna mistério
o natal chegou

Tempestade

László Péri - Der Strum (1923)

No caminho do viandante, a tempestade é um elemento central. Na tempestade dissolve-se a ordem estabelecida. Os hábitos, cristalizações de onde o espírito se ausentou, são desfeitos perante o inusitado do tempestuoso. Mais leve, o espírito reabre-se para o inédito de cada momento, salvo pelo troar da tempestade.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

A adoração do Menino

Maestro del Retablo di Bolea - Adoración del Niño

Desde há bastante tempo que é moda olhar para o cristianismo a partir das práticas deletérias dos cristãos. Esse olhar enviesado oculta o papel profundo que o cristianismo tem no melhor que há na cultura e civilização ocidentais. Veja-se o exemplo retirado do quadro atribuído ao mestre do retábulo de Bolea. Sem o arquétipo presente na adoração do Menino, não haveria espaço cultural para uma das mais importantes conquistas civilizacionais da humanidade consignada nos direitos das crianças. Mesmo que muitos cristãos, nomeadamente padres católicos, tenham violado de forma infame esses direitos, a sua condenação começa no acto em que uma certa civilização ou cultura coloca no cerne das suas crenças a divindade do Menino Jesus, o respeito infinito pela criança, a qual, para além de humana, é divina. O que se diz dos direitos das crianças, poder-se-ia estender a todas as outras esferas dos direitos civilizacionais, nas quais a dignidade do ser humano, essa reivindicação iluminista, repousa, em última análise, nos textos neo-testamentários. Há coisas que não devemos esquecer.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (598)

Felo Monzón - Construcción (1975)

598. desenho labirintos

desenho labirintos
                ao correr
das mãos
             e toco
     com a noite
    as paredes
de argila
onde     uma música
                de segredos
me há-de prender
me há-de perder

(04/12/2016)

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

De olhos fechados

Odilon Redon - With Closed Eyes (1890)

Fecho os olhos e é tudo o que me resta. A escuridão é benfazeja. Houve um tempo em que queria ter os olhos bem abertos. Era perspicaz e via tudo, pensava. Rapidamente, a desilusão chegava. Afinal não tinha visto tanto quanto julgara. Os olhos, por abertos que estejam, são maus julgadores. As aparências são mesmo aparências. A uma desilusão somou-se outra e outra. Parecia não ter fim. E em cada uma descobria que os olhos, os meus olhos, me tinham traído. Resta-me fechá-los e entregar-me à cegueira. No escuro não há lugar para a ilusão. 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

No parapeito

George Seurat - Man at a Parapet (1881)

Se fosse um pássaro... Se fosse um pássaro poderia saltitar no parapeito sem medo de cair. Não, não sou um pássaro. Sinto apenas a vertigem e um desejo de voar. Tenho medo de olhar para baixo. Tenho medo do apelo do voo. Tenho medo. E não sei por que razão este parapeito me chama e por que motivo me debruço nele. Olho e vejo o que se passa lá em baixo. É tudo tão pequeno. Os homens, os carros. Será ali a ilha de Lilliput? Meu Deus, subo para o parapeito. Dei um passo e estou no vazio, mas as costas rasgam-se e umas enormes asas fazem-me deslizar no ar. Voo. Alguém grita:"É Gabriel, o Arcanjo". Calo-me, o que lhes direi?

domingo, 18 de dezembro de 2016

A adoração dos pastores

Rafael Durancamps - La Adoración de los Pastores

Aproxima-se o Natal. Uma das características deste evento é a sua inverosimilhança. A adoração dos pastores ao menino nascido no presépio de Belém é absurda. A natureza absurda destas narrativas não lhes vem de uma pretensa ingenuidade, mas da ausência desta. Estas narrativas foram concebidas não como um registo histórico-racional, mas contra esse mesmo registo. Dizem, pela sua simples existência, que não se dirigem à razão mas à imaginação. Não nos narram factos históricos mas trazem à luz modelos imaginários que estão para além do tempo e da história. A adoração dos pastores não retrata um facto do passado, mas um evento eterno que nunca deixou de acontecer. Na essência do cuidar do rebanho está um acto de adoração que transcende o pastor e o rebanho. É a alteridade, consubstanciada no adorado, que permite ao pastor ser aquilo que é.

sábado, 17 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (597)

Josef Albers - Constelación estructural. Alfa (1954)

597. de alfa em alfa traço

de alfa em alfa traço
no azeviche
dos céus
constelações
de luz
e letras lívidas
rastos de saudade
na solitária solidão de deus

(04/12/2016)

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

O fogo

Paul Serusier - The Fire Outside (1893)

Vinham todos os sábados. Um bloco de rocha servia mesa, talvez de altar. A primeira juntava lenha e ateava o fogo. Uma segunda trazia uma antiga panela de tripé e colocava-a sobre o fogo. Depois, vinham as outras, em procissão. O número era variável, mas nunca menos que uma vintena. Chegavam silenciosas, de olhar mortiço. Rodeavam o fogo, olhavam-no intensamente. Chegada a hora estendiam um prato vazio e as primeiras serviam-lhe a comida. Comiam e fitavam o fogo. Nunca uma palavra era dita. Acabada a refeição, iam-se embora como tinham chegado. Os olhos eram então um fogo insaciável.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Haikai do Viandante (309)

Modesto Urgell Inglada - Entardecer

rosa sobre rosa
a planície entardece
terra e solidão

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Encerrar-se na sua concha

Georgia O'keeffe - From a Shell (1930)

Na concha simboliza-se o ambiente protegido e o refúgio inexpugnável. De que se protege aquele que se encerra na sua concha? Da ameaça exterior, das solicitações do mundo? Em aparência sim. Aparências, porém, são aparências e, muitas vezes, ocultam a realidade. Na verdade, procura-se protecção contra o vento. Não o elemento físico, mas aquele vento que sopra onde quer e tem o condão de confrontar o homem com aquilo que ele é. Ao encerrar-se na sua concha, o homem protege-se de si mesmo e da sua verdade.

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (596)

Victor Vasarely - Belle-Isle (1949-52)

596. arquipélago negro

arquipélago negro
sobre azul
rochas presas
na água
da claridade
onde peixes
germinam e gemem
no gerúndio
fulvo
a obscurecer
de ilha em ilha

(04/12/2016)

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Da ociosidade

Edward Burne-Jones - Pilgrim at the Gate of Idleness (1884)

Para os gregos o ócio era a condição de possibilidade da filosofia. Sem ele não seria possível uma vida espiritual efectiva e fecunda. Há um momento, porém, talvez ainda na Idade Média em que o ócio emerge como um inimigo dessa mesma vida espiritual. A ociosidade é retratada como uma donzela sedutora, tal como, muitos séculos depois, Burne-Jones, inspirado no Romance da Rosa, a retrata.  O peregrino tem de resistir à sedução do ócio para poder continuar a viagem. A acção ganhava assim uma preeminência, na vida espiritual, sobre a contemplação. O mundo moderno estava à porta. Lentamente, mas de forma inexorável, o peregrino tornou-se em turista ou em caixeiro-viajante.

domingo, 11 de dezembro de 2016

Acções de resgate

Pedro Calapez - Submerso (2001)

As múltiplas e diversificadas formas que toma a vida espiritual, da arte à religião ou à filosofia, têm um aspecto comum. A condição do espírito é de estar submerso, oculto pelas águas. Cada aventura espiritual é um exercício de o trazer à luz e de o resgatar da sua alienação na natureza. Um romance, um quadro, a prática dos místicos ou a especulação dos filósofos são, na verdade, acções de resgate e de libertação.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Da vida dos sonhos

David Lynch - A Bug Dreams of Heaven (1992)

Há a ilusão que o sonho é o veículo de uma comunicação entre o sonhador e uma qualquer realidade de natureza espiritual que reside num além. A ilusão nasce, em primeiro lugar, da cisão que leva a pensar na existência de um aquém e de um além. Em segundo lugar, da ocultação - embora as diversas escolas psicanalíticas tenham chamado a atenção para o equívoco - de que, no sonho, o espírito comunica consigo mesmo. Sendo como o vento, ele sopra onde quer. Fala do passado e fala do futuro, mas fá-lo sempre porque quer falar do presente, desse puro acontecer aqui e agora e no qual se manifesta toda a eternidade. 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (595)

Iago Pericot - 41 inclinacions (1968)

595. o tempo inclina

o tempo inclina
a erva
do espaço
muro em delírio
parede de pálpebras
a sombra
branquinegra
perdida no
oblívio oblíquo
do anoitecer

(04/12/2016)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

A página em branco

Enrique Clement - La máquina de escribir, Blanco y Negro (1930)

Sentava-me e começava a escrever. Os textos cresciam ao ritmo da agilidade dos dedos. Inventava e reinventava histórias, como se a cornucópia da abundância tivesse sido derramada sobre mim. Um dia, porém, as teclas da máquina de escrever pareceram-me ligeiramente presas. Limitei-me a empregar mais de força nos dedos. No dia seguinte, tudo voltou ao normal. Passado semanas, tornou a acontecer. Nesse dia tive uma tontura. Mas, na manhã seguinte, a escrita fluía sem parar. Passados dois dias, os dedos foram impotentes para carregar nas teclas. Sobre mim desceu um grande nevoeiro. Até hoje. Esta é a última página que coloquei na máquina. Em branco.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Haikai do Viandante (308)

Vincent Van Gogh - Estudio con abetos rojos en otoño (1889)

sobre os abetos
desce uma luz vermelha
folhas de outono

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Reabrir a porta

Pierre Bonnard - La Porte Ouverte (1910)

Em verdade, em verdade te digo: quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus. (João 3:3)

O momento do nascimento é o da primeira abertura da porta. A incomensurabilidade da existência está ali plena e totalmente disponível para o recém-nascido. A partir desse momento, por uma necessidade inelutável de sobrevivência, a educação – seja ela de que tipo for – encarrega-se de fechar a porta. Resta à maioria dos homens espreitar pelo buraco da fechadura. A isso chamam compreender a realidade. Alguns, porém, descobrem que a porta fechada já tinha estado escancarada. Abrir de novo a porta passa a ser então a sua missão. A isto chamou João, o Evangelista, nascer de novo.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (594)

Wassily Kandinsky - Composition VI (1913)

594. o ondulado da harmonia

o ondulado da harmonia
arde em silêncio
no lume brando
do caos
no fogo
de um odor azul
em êxtase
na louca loucura
dos vermelhos
tintos de luz e mágoa

(08/11/2016)

domingo, 4 de dezembro de 2016

Partir pedra

George Seurat - The Stone Breaker (1882)

Ao domingo, descansava. Nos outros dias da semana, porém, trabalhava o dia inteiro. Partia pedras e acumulava-as em grandes montes. Infatigavelmente. Por vezes, repousava e bebia água ou comia alguma coisa. Logo voltava à tarefa, sem desfalecimento. Não, nunca vi sair dali qualquer pedra ou tirar proveito do terreno livre das pedras. Estas eram partidas e amontoadas. Não tinha com ele qualquer proximidade, mas um dia perguntei-lhe a razão do seu trabalho. Olhou-me estupefacto. Havia nos seus olhos uma ironia matizada pelo cansaço. Respondeu-me: e para que serve o seu? E continuou.

sábado, 3 de dezembro de 2016

O espírito e a obra de arte

Joerg Immendorff - Anbetung des Inhalts (1985)

Existem obras de arte - pinturas, poemas, romances, peças musicais, etc. - cujo conteúdo provoca uma verdadeira adoração, permitindo que entre elas e o público se estabeleça uma relação religiosa, no sentido em que o vocábulo religião é derivado de re-ligação. O que acontece é que o espírito e a obra se reconhecem um ao outro como partes de um mesmo todo. Ao reconhecerem-se formam uma totalidade que está para além das visões parcelares com que os homens interpretam os acontecimentos do mundo. Esse encontro entre o espírito e a obra eleva o homem para um além que não apenas é incomensurável com aquilo a que chamamos realidade como lhe permite, apesar dessa incomensurabilidade, compreendê-la de forma mais ampla e profunda.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Sagradas famílias

Pablo Picasso - Familia a orillas del mar (1922)

Neste quadro de Picasso, Família à beira mar, de 1922, podemos compreender a capacidade de metamorfose do espírito e a relação deste com aquilo que Carl Gustav Jung denominou de arquétipos. Olhamos o quadro e percebemos de imediato que, apesar da forma como os figurantes se apresentam nesta cena à beira mar, estamos perante uma refiguração da Sagrada Família. A própria ideia de Sagrada Família, tal como é dada no presépio de Belém, é já um momento refigurativo de uma experiência triangular entre o homem, a mulher e a criança bem mais arcaica. O espírito na sua infinita inquietude exprime-se então nesta tensão entre aquilo que é sempre novo e o que é permanente.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Poemas do Viandante (593)

Georgia O'keeffe - Abstraction, white rose nº 2 (1927)

593. a rosa desliza branca

a rosa desliza branca
na pétala vil
da inocência
vai desvalida
e desavinda
corola de pudor
na aurora da boca
do deus tocado
tocado
pela harpa do desejo

(08/11/2016)