terça-feira, 22 de novembro de 2016

A voz

Giovanni Boldini - La Cantante Mondane (c. 1884)

O público estava em êxtase, preso naquela voz, como se só ela existisse. A diva, porém, tinha o ar de quem já não podia ver o pianista e assustava-se até com a própria voz. Olhava as pessoas como se formassem um bando de harpias e tremia. Por vezes, parecia suspender o canto, emudecer, mas não. O que me espantou foi ninguém ter dado por nada quando o corpo dela ficou hirto. Depois estremeceu e começou a apagar-se. Primeiro, perdeu os contornos, a seguir tornou-se uma sombra, uma névoa e, por fim, desapareceu. Só a voz persistiu, mais bela que nunca, enlouquecendo quem a ouvia.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

O cavalo de Tróia

Lovis Corinth - The Trojan horse (1924)

Nos dias de hoje tornou-se natural interpretar as narrativas míticas como uma reminiscência - por norma, distorcida - de acontecimentos reais. O efeito é rasurar a carga simbólica que a narrativa mítica traz consigo e, através dessa rasura, pôr de lado a natureza espiritual que o mito concentra em si e desencadeia naquele que o escuta e o perscruta. O cavalo de Tróia não foge à regra. As leituras ficcionais ou científicas anulam o ensinamento espiritual que o mito traz consigo. Muitas vezes, o espírito ilude-se a si mesmo e, julgando-se vencedor da aventura espiritual que elegeu, traz para si, como se fosse um prémio, o cavalo de Tróia que tornará patente a sua derrota e a ilusão em que persistia. 

domingo, 20 de novembro de 2016

Domingo de chuva

Émile Jourdan - Pluie à Pont-Aven (1900)

Os domingos são sempre dias onde se manifesta uma qualquer anormalidade. Por vezes, é a melancolia de uma tarde de sol que anuncia a desadequação à norma. Um domingo chuvoso traz consigo o mesmo poder simbólico. Não apenas retém os seres humanos nas suas casas, como é sentido como uma estranha injunção para que se recolham em si mesmos e, por um momento, esqueçam, nesse recolhimento, a inclinação para se dispersarem, movidos pelo fascínio que o mundo sobre eles exerce. Recolher-se em si, ainda que por instantes, é já um confronto consigo mesmo, um questionar sobre quem se é e sobre a vida que se tem. São perigosos os domingos de chuva.

sábado, 19 de novembro de 2016

Da ambiguidade da memória

Gino Severini - Memories of a Journey (1911)

A memória traz consigo, devido à sua própria natureza, uma ambiguidade que não deixa de assombrar a vida espiritual dos homens. Toda a vida espiritual tem uma dimensão de rememoração, de anamnese, onde o exercício da reminiscência liga o sujeito ao fio condutor de uma tradição. O exercício memorial, porém, pode constituir um fascínio de tal modo poderoso que desliga o homem da sua própria viagem, e esta é sempre um estar no presente, uma atenção plena e total ao puro acontecer no aqui e no agora.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (590)

Jesús María Cormán - 5.8 Richter scale (2001)

590. poeiras sobre poeiras

poeiras sobre poeiras
erguem-se
ao som
de um violino
e tudo ondula
na onda sonora
de uma sequência
ordenada
ao ritmo
da escala de richter

(22/10/2016)

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Acerca da definição

Albert Porta - Book of Definitions (1978)

Uma das inclinações mais notáveis do espírito humano é a de se entregar ao trabalho da definição. Definir significa antes de mais limitar. Assinalado um território assim limitado, passa-se ao processo da sua caracterização para lhe dar um sentido. Contudo, nesta tarefa que está na base da filosofia e da ciência há um tal estreitamento do horizonte que o mesmo espírito sente toda a definição como um produto estranho e, em última análise, ameaçador. É por isso que a vida espiritual é uma revolta contínua contra a definição, uma guerra sem parar do espírito consigo mesmo, contra aquilo que nele é tendência mórbida e inelutável para a limitação.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Haikai do Viandante (305)

Benvenuto Benvenuti - Cipresse e colombe (194)

pombas e ciprestes
murmuram ao cair noite
vento e solidão

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Pastores sem ovelhas

Pére Pruna - O Bom Pastor (1950-55)

No epíteto de Bom Pastor não emerge apenas a bondade como traço de carácter ou como qualidade técnica na condução do rebanho. Surge também a ideia de rebanho. O problema que se coloca às religiões do Livro - nomeadamente, ao Cristianismo - é que vivemos numa época em que os homens deixaram de se compreender como ovelhas de um rebanho. Este é o drama das igrejas cristãs e o terror dos clérigos muçulmanos. Que fazer com homens que dispensam pastores? Estarão eles condenados a uma vida destituída de relação com o espiritual? Nada aponta nesse sentido. Pelo contrário. O que os homens de hoje em dia dispensam não é a vida do espírito, mas o serem transformados em eternas crianças - em ovelhas de um rebanho - entregues à guarda de pastores que, muitas vezes, estão longe de serem bons. Pensar por si mesmo, essa injunção do Iluminismo, não é uma revolta contra o espírito, mas um novo fundamento de uma vida espiritual mais plena, mais profunda e mais comprometida.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Poemas do Viandante (589)

Jesús María Cormán - 2.3 Richter scale (2001)

589. treme a terra

                treme a terra
na leveza
escura do espaço
                oscila no ócio
da eternidade
                se grãos de areia
deslizam
pelos dedos
                vazios
e
                vacilantes de deus

(22/10/2016)

domingo, 13 de novembro de 2016

Tagarelice

Federico Zandomeneghi - Bavardage

Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento da vida do espírito, seja em que dimensão for que esta se manifesta, é a tagarelice. Esta é muito mais do que um assunto e um vício de grupos de pessoas que assim se ocupam na vida privada. A tagarelice é a essência da esfera pública. Mesmo os assuntos sérios e decisivos da vida das comunidades transformam-se, na esfera pública, num exercício onde os tagarelas se exibem e dominam a paisagem social. O pior da tagarelice, porém, não se encontra aí. O pior é a tagarelice íntima que a consciência de cada um empreende consigo mesma. Esta tagarelice íntima, mãe de todas as outras, é o sinal de uma doença do espírito, que se cinde para empreender consigo mesmo uma conversação fútil e sem fim, um exercício de distracção e de alienação, de perda na mais pura errância.