segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (303)

Ernst Ludwig Kirchner - Alberi d'autunno (1908)

as cores de outono
descem sobre os meus olhos
fogo e abandono

domingo, 30 de outubro de 2016

O estado arenoso

Gonzalo Chillida - Arenas (1969)

A educação dos seres humanos tende a privilegiar a solidez. Torná-los sólidos, com uma vida solidamente assente na terra, com uma função consistente, em instituições, também elas, firmes como a rocha. A ilusão da solidez é o resultado dessa educação, uma ilusão persistente e, muitas vezes, inultrapassável. A vida do espírito, porém, procura a fluidez, tornar o homem livre como o vento, aquele que sopra onde quer. O primeiro passo é o da fragmentação daquilo que é sólido. As areias são já um compromisso com essa fluidez. Não são líquidas, mas também, na verdade, já não são inteiramente sólidas. O estado arenoso é o primeiro passo da libertação do espírito da ilusão da solidez. Tudo o que é solido se fragmenta e se desagrega.

sábado, 29 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (585)

Kazimir Malevich - Círculo Negro (1923-1929)

585. um círculo negro

um círculo negro
nasce
na planície cega
do olhar
no grito surdo
da sombra
no cheiro impuro
da virginal
virgindade da manhã

(21/10/2016)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O sono no bosque

Albano Vitturi - Bosco (1940)

Por vezes, sentava-me à sombra de uma daquelas árvores. Gostava do silêncio do bosque, da solidão que o habitava. Muito tinha ali brincado na infância. Dormia um pouco e depois voltava para casa. Uma tarde, porém, adormeci profundamente. Quando acordei, uma criança puxava-me pela gola do casaco. Senti-me velho e desmazelado. Devia cheirar mal. À minha volta não havia árvores, o bosque desaparecera e eu estava encostado à parede de um enorme prédio. A criança não parava de me puxar e, o que me aterrorizou, era singularmente parecida comigo quando tinha a sua idade. Não, não me pergunte quanto tempo dormi.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Sem forma nem figura

Jacint Salvadó - Informel (1959)

A vida do espírito, nas suas diversas manifestações, é fluida, sem contornos definidos, por vezes parece um lago calmo ao entardecer; outras, um rio caudaloso na força do meio-dia. É o terror sentido perante a fluidez e o informal que leva os homens a projectar sobre ela esta ou aquela figura, a atribuir-lhe esta ou aquela forma. Ela, porém, nunca se conforme e irrompe ora selvagem ora murmurante, destruindo incessantemente as formas com que o nosso medo a tenta cobrir. Ela, a vida do espírito, é o que não tem forma nem figura. É apenas um puro fluir.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (302)

Egon Schiele - Árvores outonais (1911)

os ramos despidos
folhas perdidas no chão
nostalgia de outono

terça-feira, 25 de outubro de 2016

O enigma

Chema Cobo - El desconocido de si mismo (1984)

Há um momento na vida em que nos confrontamos com o enigma que somos. Desconhecidos de nós mesmos, empreendemos a viagem em busca dessa pátria feliz, talvez o paraíso, em que descobriríamos a nossa autêntica identidade, o ser que somos. Se formos persistentes, porém, descobriremos o mais importante. Não há nada para conhecermos, nenhum enigma para revelar. Há que viajar e isso é tudo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (584)

Jackson Pollock - Ritmo de Outono, número 30 (1950)

584. folhas de outono

folhas de outono
viajam vagarosas
no clic-clac
dos meus dedos
e
traem
ritmos rudes
no rumor das ruas
no clac-clic
dos teus segredos

(20/10/2016)

domingo, 23 de outubro de 2016

A tempestade

Marco Manzella - Diálogo sobre las variaciones atmosféricas (2001)

Sentava-se, pegava num livro, olhava a rua pela janela. Passado algum tempo, perguntava se iria chover. As primeiras vezes, nem liguei. O tempo estava indeciso, a pergunta parecia razoável. Não é que o desenrolar da conversa não me deixasse perplexo, deixava. Mais tarde, começou a perguntar-me se iria chover, mesmo quando o dia estava esplêndido. Não foi a incongruência que me atormentou, foi a revelação. Não tinha notado, mas agora era claro. Sempre que ela se sentava com um livro nas mãos e me perguntava se iria chover, uma fúria tomava conta dela e desencadeava uma tempestade.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Gramáticas

Paul Serusier - Grammar (1892)

As línguas estruturam-se através de uma gramática. Tendencialmente, apesar dos movimentos centrífugos do discurso, a gramática tende a ser única, nem que seja por pressão das necessidades comunicativas. A vida do espírito, seja em que área for, começa com uma rebelião contra a gramática. O caminho que cada um faz é único e incomunicável. Essa singularidade incomunicável não dispensa uma gramática, mas impõe uma morfologia única e uma sintaxe própria, isto é, uma gramática não partilhável. A vida do espírito começa para além da dimensão do comum, da comunicação e da própria comunhão.