domingo, 30 de outubro de 2016

O estado arenoso

Gonzalo Chillida - Arenas (1969)

A educação dos seres humanos tende a privilegiar a solidez. Torná-los sólidos, com uma vida solidamente assente na terra, com uma função consistente, em instituições, também elas, firmes como a rocha. A ilusão da solidez é o resultado dessa educação, uma ilusão persistente e, muitas vezes, inultrapassável. A vida do espírito, porém, procura a fluidez, tornar o homem livre como o vento, aquele que sopra onde quer. O primeiro passo é o da fragmentação daquilo que é sólido. As areias são já um compromisso com essa fluidez. Não são líquidas, mas também, na verdade, já não são inteiramente sólidas. O estado arenoso é o primeiro passo da libertação do espírito da ilusão da solidez. Tudo o que é solido se fragmenta e se desagrega.

sábado, 29 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (585)

Kazimir Malevich - Círculo Negro (1923-1929)

585. um círculo negro

um círculo negro
nasce
na planície cega
do olhar
no grito surdo
da sombra
no cheiro impuro
da virginal
virgindade da manhã

(21/10/2016)

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O sono no bosque

Albano Vitturi - Bosco (1940)

Por vezes, sentava-me à sombra de uma daquelas árvores. Gostava do silêncio do bosque, da solidão que o habitava. Muito tinha ali brincado na infância. Dormia um pouco e depois voltava para casa. Uma tarde, porém, adormeci profundamente. Quando acordei, uma criança puxava-me pela gola do casaco. Senti-me velho e desmazelado. Devia cheirar mal. À minha volta não havia árvores, o bosque desaparecera e eu estava encostado à parede de um enorme prédio. A criança não parava de me puxar e, o que me aterrorizou, era singularmente parecida comigo quando tinha a sua idade. Não, não me pergunte quanto tempo dormi.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Sem forma nem figura

Jacint Salvadó - Informel (1959)

A vida do espírito, nas suas diversas manifestações, é fluida, sem contornos definidos, por vezes parece um lago calmo ao entardecer; outras, um rio caudaloso na força do meio-dia. É o terror sentido perante a fluidez e o informal que leva os homens a projectar sobre ela esta ou aquela figura, a atribuir-lhe esta ou aquela forma. Ela, porém, nunca se conforme e irrompe ora selvagem ora murmurante, destruindo incessantemente as formas com que o nosso medo a tenta cobrir. Ela, a vida do espírito, é o que não tem forma nem figura. É apenas um puro fluir.

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (302)

Egon Schiele - Árvores outonais (1911)

os ramos despidos
folhas perdidas no chão
nostalgia de outono

terça-feira, 25 de outubro de 2016

O enigma

Chema Cobo - El desconocido de si mismo (1984)

Há um momento na vida em que nos confrontamos com o enigma que somos. Desconhecidos de nós mesmos, empreendemos a viagem em busca dessa pátria feliz, talvez o paraíso, em que descobriríamos a nossa autêntica identidade, o ser que somos. Se formos persistentes, porém, descobriremos o mais importante. Não há nada para conhecermos, nenhum enigma para revelar. Há que viajar e isso é tudo.

segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (584)

Jackson Pollock - Ritmo de Outono, número 30 (1950)

584. folhas de outono

folhas de outono
viajam vagarosas
no clic-clac
dos meus dedos
e
traem
ritmos rudes
no rumor das ruas
no clac-clic
dos teus segredos

(20/10/2016)

domingo, 23 de outubro de 2016

A tempestade

Marco Manzella - Diálogo sobre las variaciones atmosféricas (2001)

Sentava-se, pegava num livro, olhava a rua pela janela. Passado algum tempo, perguntava se iria chover. As primeiras vezes, nem liguei. O tempo estava indeciso, a pergunta parecia razoável. Não é que o desenrolar da conversa não me deixasse perplexo, deixava. Mais tarde, começou a perguntar-me se iria chover, mesmo quando o dia estava esplêndido. Não foi a incongruência que me atormentou, foi a revelação. Não tinha notado, mas agora era claro. Sempre que ela se sentava com um livro nas mãos e me perguntava se iria chover, uma fúria tomava conta dela e desencadeava uma tempestade.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Gramáticas

Paul Serusier - Grammar (1892)

As línguas estruturam-se através de uma gramática. Tendencialmente, apesar dos movimentos centrífugos do discurso, a gramática tende a ser única, nem que seja por pressão das necessidades comunicativas. A vida do espírito, seja em que área for, começa com uma rebelião contra a gramática. O caminho que cada um faz é único e incomunicável. Essa singularidade incomunicável não dispensa uma gramática, mas impõe uma morfologia única e uma sintaxe própria, isto é, uma gramática não partilhável. A vida do espírito começa para além da dimensão do comum, da comunicação e da própria comunhão.

Poemas do Viandante (583)

Jackson Pollock - Alchemy (1947)

choro o chumbo
transformado
em ouro
na cinza suave
e no restolho
onde nasce
negra de nigredo
a obra
grande e rubra
de um coração erguido
na luz do desejo

(20/10/2016)

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Possessão

Paula Rego - Bad Dog (1994)

Tudo começou com pequenas e esporádicas perdas de consciência. Perguntava-me, ao levantar-se, quem ela era, mas antes que eu tivesse tempo de responder, sorria e tudo voltava ao normal. Depois, as crises tornaram-se frequentes. Passava dias inteiros sem saber sequer o nome, embora levasse a vida habitual. No mês passado, porém, tudo se agravou. Levantou-se e começou a rosnar-me. Tive medo. Tentei apaziguá-la. Ela então ladrou e mordeu-me. Desorientado, acabei por sair. Comprei o que precisava. Agora passeio-a pelo jardim à trela, depois ela senta-se aos meus pés, enquanto vejo televisão e lhe afago a cabeça. Fora das refeições, nunca lhe tiro o açaime.

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (301)

Alphonse Osbert - O mistério da noite (1897)

silêncio na noite
pássaros poisam nos ramos
um véu sobre a terra

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Caminho de sombras

Mateo Vilagrasa - Camino de sombras (1997)

A experiência da duração, do trânsito do tempo e da contínua mudança, torna manifesto que a vida do homem sobre a Terra é, na verdade, um caminho de sombras. Aquilo que, por um instante, pareceu luminoso, logo se torna sombrio, até que o passado o encerra na escuridão. Talvez o homem não avance de claridade em claridade, mas ande de sombra em sombra. Em cada uma, haverá a sua dose de luz e o seu quinhão de trevas. Perante uma luz infinita, o aparente progresso que a expressão "de claridade em claridade" parece significar torna-se risível. Esta ideia de um progresso para a luz é ainda um elemento sombrio que se espalha sobre o homem e o conduz pelo caminho das sombras.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (582)

Morris Louis - Alpha, Alpha (1960)

582. um alfa cresce

um alfa cresce
na alma
teme em silêncio
o destino do
ómega
e prende-se
à
seda de sílex
da boca que clama
de alfa em alfa

(06/10/2016)

domingo, 16 de outubro de 2016

Do assentimento

José Alfonso Morera Ortiz - "Amén" (1990-94)

O assentimento, que a expressão de origem hebraica amém traduz, é compreendido, muitas vezes, como a conformação passiva a um destino. Essa compreensão obscura acaba por ocultar um outro lado do assentimento. O da luta com a suspeita, a confrontação com o incerto, o dilaceramento da dúvida. Assentir, desse ponto de vista, não é a aceitação de uma derrota, mas a expressão de uma vitória sobre si mesmo.

sábado, 15 de outubro de 2016

A mulher de castanho

James Whistler - Arrangement in Black and Brown: The Fur Jacket (1870)

Vi-a várias vezes. Muitas vezes, mesmo, mas isso não prova a sua realidade. Se havia nevoeiro, e aqui, naquele tempo, o nevoeiro não era raro, ela, envolta pela névoa, caminhava lentamente avenida fora. Passava diante desta casa, onde sempre vivi, e perdia-se mais além. Nunca trouxe outra roupa senão um vestido e um casaco castanhos. Jamais falou com alguém ou cruzou o olhar comigo. Um dia, apesar do grande nevoeiro que tinha caído, ela não passou. Na manhã seguinte, quando saí de casa, deparei-me à porta com um monte de roupas velhas. Reconheci-as. O nevoeiro não tornou a cair sobre a cidade.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (581)

Alexander Calder - Grande Espiral (1970)

581. tintas em espiral

tintas em espiral
sobem e
descem
na vertigem dos dedos
e
são signo e
são sinal
no ardor azul
do vermelho vidrado
em laranja
amarguiamarela

(19/09/2016)

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Uma incongruência

Luis Pintos Fonseca - Cristo

A aguarela do pintor pontevedrino Luis Pintos Fonseca (1906 - 1959) tem o poder de tornar patente a incongruência histórica do cristianismo. Como foi possível que Cristo crucificado, a simbolização da humilhação, do abandono, da irrelevância social, se tornasse, juntamente com a herança helénica, o núcleo dinamizador da mais poderosa civilização material e cultural que alguma vez se manifestou sobre este pobre planeta? Olhamos a aguarela e vemos na morte - e morte na cruz - a semente de um florescimento exuberante. Quando o discurso do mundo se centra no fausto e no poder, não deixa de ser incongruente e causar perplexidade que aquilo que o Ocidente é tenha a sua origem num Deus que veio para morrer.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (300)

William Turner - Lluvia, Vapor y Velocidad (1844)

as primeiras chuvas
caem sobre a terra seca
vapores de outono

terça-feira, 11 de outubro de 2016

A leitora oblíqua

Balthasar Klossowski de Rola - Katia lisant

Tornei-me um voyeur. Tudo começou com um acaso. Cheguei à janela e, na varanda de uma casa há muito desabitada, estava ela a ler. Escondi-me para não ser visto. No dia seguinte, ela voltou. Um pé no chão e outro na cadeira onde se sentava. A saia, ela vestia sempre uma saia, era generosa comigo e oferecia-me a vista das suas pernas. Apaixonei-me, claro. Não pense que foi por causa das pernas. Seria pueril. Foi pela forma como segurava o livro e o olhava de soslaio. Lia e desconfiava do que lia, mas todos os dias se sentava a ler. Um dia dirigi-me a ela na rua. Disse-me: estava à tua espera. Fiquei atónito. Hoje não lê. Senta-se na minha cama, pega-me nas mãos e olha-me de viés.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (580)

Robert Motherwell - Na Caverna de Platão n.º 1 (1972)

580. curvado na caverna

curvado na caverna
platão cava
escava
o chão e o tecto
rasga o coração
e
descobre
uma réstia
de sombra
semeada na luz
da razão

(19/09/2016)

domingo, 9 de outubro de 2016

Renúncia

Albert Rafols Casamada - El Depósito (1981)

A vida material é orientada pela ideia de acumular. Os materiais acumulados exigem grandes depósitos. A vida do espírito procura, a cada instante, aquilo que não se pode acumular, pois quanto mais se acumula menos se tem. Quanto mais se partilha, mais há para usufruir. Por isso, não apenas se afasta do exercício da acumulação como começa, de facto, pelo abandono de todo e qualquer depósito. A renúncia ao que é próprio é a sua condição de possibilidade.

sábado, 8 de outubro de 2016

O centro negro

Albert Gleizes - O centro negro (1925)

O núcleo central do homem, aquilo que há de mais fundo nele, pode ser compreendido com um centro negro. Não porque  seja algo sombrio ou implique uma relação com o negativo. Pelo contrário, o excesso luminoso que o constitui é incompreensível para o homem. Ao tentar olhá-lo de frente fica cego. Olha para mas tudo o que apreende é a mais negra escuridão.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

A queda de Ícaro

Marc Chagall - A Queda de Ícaro (1975)

Como em muitos mitos gregos, também no de Ícaro a incongruência que o leva à perda não está na sua pretensão de voar. Contrariamente a Dédalo, o que perde Ícaro é a desobediência e esta é marcada pelo excesso. Ao homem, mesmo se consegue asas para voar, não lhe é permitido aproximar-se demasiado da fonte da luz. Pode-se cruzar a tradição pagã clássica com a doutrina cristã do pecado. Ícaro desvia-se do caminho que lhe é próprio e permitido. Entra na errância e perde-se. A noção de pecado, se limpa dos depósitos beatos que acumulou, aproxima-se desta perspectiva simbolizada em Ícaro. Significa um desviar-se do caminho, errar na rota, entrar na errância.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (579)

Leopoldo 
Leopoldo Novoa - Relieve ceniza con mancha negra (1991)

579. uma mácula mancha

uma mácula mancha
de negro
a cinza
                    cresce a sul
dos olhos
um eclipse
do branco
perdido no abraço
enfermo
          a leste da escuridão

(16/08/2016)

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Ascensão

Ángel Mateo Charris - Air Angelus (1999)

Sentado na varanda, costumava vê-la trabalhar. Era meticulosa e um pouco lenta. Não seria muito velha, embora, vista de longe, o aparentasse. A gravidade devorava-a. Por vezes, parava, encostava-se à enxada ou à forquilha com que trabalhava. Olhava longamente o céu, como se sentisse saudades de alguma coisa. Logo voltava ao trabalho. Era assim do nascer ao pôr do sol. Um dia, o descanso prolongou-se. Isso perturbou-me, confesso. Estava habituado à rotina. Olhei-a com mais atenção. Quando o crepúsculo começou a cair, o corpo dela estremeceu. Com violência. Depois - havia um silêncio opressivo, recordo - começou a elevar-se. Os braços eram agora asas. Um anjo, pensei. Não a tornei a ver.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (299)

Nicanor Piñole - El Cielo

brancos sobre azuis
espelham o mar nos céus
ondas e silêncio

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Do avanço

André Louis Derain - The Turning Road (1906)

Em qualquer área da vida do espírito - e qualquer actividade humana, por física que seja, é sempre uma actividade espiritual - o caminho está longe de ter a configuração de uma recta, uma espécie de estrada que se abre, sem qualquer curva, à frente dos homens e que não teria fim. O caminho é infinito, certamente, mas obriga a voltar atrás uma e outra vez, numa aparente circularidade que, vista de fora, se percebe como uma espiral, onde o viandante vai avançando, mesmo quando é obrigado a retroceder. Por vezes, é no próprio retrocesso que se encontra o efectivo avanço.

domingo, 2 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (578)

Jacinta Gil Roncalés - Búsqueda del infinito (1991)

578. procuro o infinito

procuro o infinito
no mistério
das cores
no tumulto
do azul
aberto ao ardor
de uma nuvem
de branco
tinta
de sangue e
um rasto rosamarelo

(16/08/2016)

sábado, 1 de outubro de 2016

Do crescimento


A vida espiritual tem por finalidade tirar os seres humanos da sua menoridade, do fascínio que sobre eles exercem os objectos do mundo e, assim, os prendem às aparências. Por isso é frequenta a analogia com a vida dos cereais. Também os seres humanos são sementes deitadas à terra. Grãos que germinam e têm a possibilidade de crescer, de se tornarem naquilo que potencialmente são. O culto romano da deusa Ceres não deve ser apenas lido como o sintoma de uma dependência dos homens dos cereais. Ceres provém da raiz indo-europeia "Ker", que significa crescer. O crescer dos cereais, protegido pela deusa, era um modelo que orientava a própria vida do espírito. O trabalho agrícola mais que um labor físico era uma actividade espiritual.

Pintura de Oscar Dominguez - Ceres (1952). Guache sobre papel. Dimensões: 207 x 295,5 cm.