sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (581)

Alexander Calder - Grande Espiral (1970)

581. tintas em espiral

tintas em espiral
sobem e
descem
na vertigem dos dedos
e
são signo e
são sinal
no ardor azul
do vermelho vidrado
em laranja
amarguiamarela

(19/09/2016)

quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Uma incongruência

Luis Pintos Fonseca - Cristo

A aguarela do pintor pontevedrino Luis Pintos Fonseca (1906 - 1959) tem o poder de tornar patente a incongruência histórica do cristianismo. Como foi possível que Cristo crucificado, a simbolização da humilhação, do abandono, da irrelevância social, se tornasse, juntamente com a herança helénica, o núcleo dinamizador da mais poderosa civilização material e cultural que alguma vez se manifestou sobre este pobre planeta? Olhamos a aguarela e vemos na morte - e morte na cruz - a semente de um florescimento exuberante. Quando o discurso do mundo se centra no fausto e no poder, não deixa de ser incongruente e causar perplexidade que aquilo que o Ocidente é tenha a sua origem num Deus que veio para morrer.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (300)

William Turner - Lluvia, Vapor y Velocidad (1844)

as primeiras chuvas
caem sobre a terra seca
vapores de outono

terça-feira, 11 de outubro de 2016

A leitora oblíqua

Balthasar Klossowski de Rola - Katia lisant

Tornei-me um voyeur. Tudo começou com um acaso. Cheguei à janela e, na varanda de uma casa há muito desabitada, estava ela a ler. Escondi-me para não ser visto. No dia seguinte, ela voltou. Um pé no chão e outro na cadeira onde se sentava. A saia, ela vestia sempre uma saia, era generosa comigo e oferecia-me a vista das suas pernas. Apaixonei-me, claro. Não pense que foi por causa das pernas. Seria pueril. Foi pela forma como segurava o livro e o olhava de soslaio. Lia e desconfiava do que lia, mas todos os dias se sentava a ler. Um dia dirigi-me a ela na rua. Disse-me: estava à tua espera. Fiquei atónito. Hoje não lê. Senta-se na minha cama, pega-me nas mãos e olha-me de viés.

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (580)

Robert Motherwell - Na Caverna de Platão n.º 1 (1972)

580. curvado na caverna

curvado na caverna
platão cava
escava
o chão e o tecto
rasga o coração
e
descobre
uma réstia
de sombra
semeada na luz
da razão

(19/09/2016)

domingo, 9 de outubro de 2016

Renúncia

Albert Rafols Casamada - El Depósito (1981)

A vida material é orientada pela ideia de acumular. Os materiais acumulados exigem grandes depósitos. A vida do espírito procura, a cada instante, aquilo que não se pode acumular, pois quanto mais se acumula menos se tem. Quanto mais se partilha, mais há para usufruir. Por isso, não apenas se afasta do exercício da acumulação como começa, de facto, pelo abandono de todo e qualquer depósito. A renúncia ao que é próprio é a sua condição de possibilidade.

sábado, 8 de outubro de 2016

O centro negro

Albert Gleizes - O centro negro (1925)

O núcleo central do homem, aquilo que há de mais fundo nele, pode ser compreendido com um centro negro. Não porque  seja algo sombrio ou implique uma relação com o negativo. Pelo contrário, o excesso luminoso que o constitui é incompreensível para o homem. Ao tentar olhá-lo de frente fica cego. Olha para mas tudo o que apreende é a mais negra escuridão.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

A queda de Ícaro

Marc Chagall - A Queda de Ícaro (1975)

Como em muitos mitos gregos, também no de Ícaro a incongruência que o leva à perda não está na sua pretensão de voar. Contrariamente a Dédalo, o que perde Ícaro é a desobediência e esta é marcada pelo excesso. Ao homem, mesmo se consegue asas para voar, não lhe é permitido aproximar-se demasiado da fonte da luz. Pode-se cruzar a tradição pagã clássica com a doutrina cristã do pecado. Ícaro desvia-se do caminho que lhe é próprio e permitido. Entra na errância e perde-se. A noção de pecado, se limpa dos depósitos beatos que acumulou, aproxima-se desta perspectiva simbolizada em Ícaro. Significa um desviar-se do caminho, errar na rota, entrar na errância.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (579)

Leopoldo 
Leopoldo Novoa - Relieve ceniza con mancha negra (1991)

579. uma mácula mancha

uma mácula mancha
de negro
a cinza
                    cresce a sul
dos olhos
um eclipse
do branco
perdido no abraço
enfermo
          a leste da escuridão

(16/08/2016)

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Ascensão

Ángel Mateo Charris - Air Angelus (1999)

Sentado na varanda, costumava vê-la trabalhar. Era meticulosa e um pouco lenta. Não seria muito velha, embora, vista de longe, o aparentasse. A gravidade devorava-a. Por vezes, parava, encostava-se à enxada ou à forquilha com que trabalhava. Olhava longamente o céu, como se sentisse saudades de alguma coisa. Logo voltava ao trabalho. Era assim do nascer ao pôr do sol. Um dia, o descanso prolongou-se. Isso perturbou-me, confesso. Estava habituado à rotina. Olhei-a com mais atenção. Quando o crepúsculo começou a cair, o corpo dela estremeceu. Com violência. Depois - havia um silêncio opressivo, recordo - começou a elevar-se. Os braços eram agora asas. Um anjo, pensei. Não a tornei a ver.