segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (580)

Robert Motherwell - Na Caverna de Platão n.º 1 (1972)

580. curvado na caverna

curvado na caverna
platão cava
escava
o chão e o tecto
rasga o coração
e
descobre
uma réstia
de sombra
semeada na luz
da razão

(19/09/2016)

domingo, 9 de outubro de 2016

Renúncia

Albert Rafols Casamada - El Depósito (1981)

A vida material é orientada pela ideia de acumular. Os materiais acumulados exigem grandes depósitos. A vida do espírito procura, a cada instante, aquilo que não se pode acumular, pois quanto mais se acumula menos se tem. Quanto mais se partilha, mais há para usufruir. Por isso, não apenas se afasta do exercício da acumulação como começa, de facto, pelo abandono de todo e qualquer depósito. A renúncia ao que é próprio é a sua condição de possibilidade.

sábado, 8 de outubro de 2016

O centro negro

Albert Gleizes - O centro negro (1925)

O núcleo central do homem, aquilo que há de mais fundo nele, pode ser compreendido com um centro negro. Não porque  seja algo sombrio ou implique uma relação com o negativo. Pelo contrário, o excesso luminoso que o constitui é incompreensível para o homem. Ao tentar olhá-lo de frente fica cego. Olha para mas tudo o que apreende é a mais negra escuridão.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

A queda de Ícaro

Marc Chagall - A Queda de Ícaro (1975)

Como em muitos mitos gregos, também no de Ícaro a incongruência que o leva à perda não está na sua pretensão de voar. Contrariamente a Dédalo, o que perde Ícaro é a desobediência e esta é marcada pelo excesso. Ao homem, mesmo se consegue asas para voar, não lhe é permitido aproximar-se demasiado da fonte da luz. Pode-se cruzar a tradição pagã clássica com a doutrina cristã do pecado. Ícaro desvia-se do caminho que lhe é próprio e permitido. Entra na errância e perde-se. A noção de pecado, se limpa dos depósitos beatos que acumulou, aproxima-se desta perspectiva simbolizada em Ícaro. Significa um desviar-se do caminho, errar na rota, entrar na errância.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (579)

Leopoldo 
Leopoldo Novoa - Relieve ceniza con mancha negra (1991)

579. uma mácula mancha

uma mácula mancha
de negro
a cinza
                    cresce a sul
dos olhos
um eclipse
do branco
perdido no abraço
enfermo
          a leste da escuridão

(16/08/2016)

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Ascensão

Ángel Mateo Charris - Air Angelus (1999)

Sentado na varanda, costumava vê-la trabalhar. Era meticulosa e um pouco lenta. Não seria muito velha, embora, vista de longe, o aparentasse. A gravidade devorava-a. Por vezes, parava, encostava-se à enxada ou à forquilha com que trabalhava. Olhava longamente o céu, como se sentisse saudades de alguma coisa. Logo voltava ao trabalho. Era assim do nascer ao pôr do sol. Um dia, o descanso prolongou-se. Isso perturbou-me, confesso. Estava habituado à rotina. Olhei-a com mais atenção. Quando o crepúsculo começou a cair, o corpo dela estremeceu. Com violência. Depois - havia um silêncio opressivo, recordo - começou a elevar-se. Os braços eram agora asas. Um anjo, pensei. Não a tornei a ver.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

Haikai do Viandante (299)

Nicanor Piñole - El Cielo

brancos sobre azuis
espelham o mar nos céus
ondas e silêncio

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Do avanço

André Louis Derain - The Turning Road (1906)

Em qualquer área da vida do espírito - e qualquer actividade humana, por física que seja, é sempre uma actividade espiritual - o caminho está longe de ter a configuração de uma recta, uma espécie de estrada que se abre, sem qualquer curva, à frente dos homens e que não teria fim. O caminho é infinito, certamente, mas obriga a voltar atrás uma e outra vez, numa aparente circularidade que, vista de fora, se percebe como uma espiral, onde o viandante vai avançando, mesmo quando é obrigado a retroceder. Por vezes, é no próprio retrocesso que se encontra o efectivo avanço.

domingo, 2 de outubro de 2016

Poemas do Viandante (578)

Jacinta Gil Roncalés - Búsqueda del infinito (1991)

578. procuro o infinito

procuro o infinito
no mistério
das cores
no tumulto
do azul
aberto ao ardor
de uma nuvem
de branco
tinta
de sangue e
um rasto rosamarelo

(16/08/2016)

sábado, 1 de outubro de 2016

Do crescimento


A vida espiritual tem por finalidade tirar os seres humanos da sua menoridade, do fascínio que sobre eles exercem os objectos do mundo e, assim, os prendem às aparências. Por isso é frequenta a analogia com a vida dos cereais. Também os seres humanos são sementes deitadas à terra. Grãos que germinam e têm a possibilidade de crescer, de se tornarem naquilo que potencialmente são. O culto romano da deusa Ceres não deve ser apenas lido como o sintoma de uma dependência dos homens dos cereais. Ceres provém da raiz indo-europeia "Ker", que significa crescer. O crescer dos cereais, protegido pela deusa, era um modelo que orientava a própria vida do espírito. O trabalho agrícola mais que um labor físico era uma actividade espiritual.

Pintura de Oscar Dominguez - Ceres (1952). Guache sobre papel. Dimensões: 207 x 295,5 cm.