quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (574)

 
Victor Vasarely - Quasar (1966)


574. quase um quasar

quase um quasar
a luz vinda
do negro negro
inominável
incendeia-se de azul
nas partículas
frias dos teus
olhos
nas trevas tocadas
trocadas
na alegria
negra da noite

(10/08/2016)

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O jogador secreto

René Magritte - O jogador secreto (1927)

Confesso, sempre tive o secreto prazer de jogar. Porquê o segredo? Está enganada. Por que haveria de ter vergonha de competir? Não, não, também não é verdade que tema ser tomado por criança presa à diversão. Todos estes anos ao meu lado e ainda não me conhece. Não é a vitória, nem o risco, nem o divertimento. É amor, jogo por o amor à regra, e não há jogo sem uma estrita regra. Sou vítima da mais secreta e vergonhosa das paixões, a paixão por aquilo que limita e oprime.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

A demanda

Salvador Dali - El farmacéutico de Ampurdán que no busca absolutamente nada (1936)

A vida do espírito começa como uma demanda. Alguém sente que perdeu alguma coisa ou que lhe falta algo. Parte, então, em busca daquilo que sente em falta. A demanda arrasta-o e traz com ela o sentimento da perda e da inutilidade. Será que haveria alguma coisa para buscar? Quando descobre que nada havia para demandar, sente, no mais fundo de si, a alegria de ter encontrado o que procurava.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Da cegueira do amor

Joaquín Mir - Amores cegos (1900)

A paixão amorosa é vista, muitas vezes, como o resultado de uma cegueira. De certa maneira, é assim. Contudo essa cegueira deve ser compreendida como aquela cegueira que atinge certos profetas, para que eles possam ver mais longe e mais fundo. A cegueira do apaixonado permite-lhe ver algo que só perante ele se manifesta e que só o seu estado de cegueira lhe permite ver. A paixão é um convite a ver outra realidade e a viver de uma outra maneira. A impotência dos homens para tal, a sua incapacidade em persistir no caminho que diante deles, por instantes, se abriu, transforma tudo numa ilusão que o tempo acabará por destruir. E de cego de amor transforma-se em cego real, isto é, vê aquilo que todos vêem.

sábado, 10 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (573)


Franz Marc - Blue Horse with Rainbow (1913)

573. um cavalo azul

um cavalo azul
voa num céu
de cristal
relincha
na sombra
irisada do arco-
-íris
e
solto galopa
a norte da noite


(09/08/2016)

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Haikai do Viandante (296)

Paul Caponigro - Monument Valley, Utah (1970)

a rocha cinzenta
desdobra-se em mil portas
segredos de pedra

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Do caminho

Max Klinger - O caminho

Toma-se com frequência o caminho como metáfora indicativa de um percurso de vida, de uma aventura espiritual, de uma demanda da verdade. No entanto, dever-se-ia ser mais sensível à ideia heideggeriana de caminhos que levam a lado nenhum. Esse é o verdadeiro caminho. Não há lado algum aonde ir, nem lado algum de onde sair, pois o lugar de partida e o sítio de chegada são um e o mesmo. 

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

A escolha

Hermen Anglada-Camarasa - As opalas (1904)

Não sei se as sonhei. Há muito que não distingo sonho e realidade. Não é esta o fruto do nosso desejo ou do nosso temor? Sentava-me na varanda e olhava a floresta. Apaziguava-me. Uma noite distingui algumas configurações luminosas, uma luz leitosa com reflexos irisados. O fenómeno repetia-se em noites de lua-nova. Inquieto, decidi ver o que era. Quando me aproximei, descobri seis estátuas femininas. Não soube identificar o material. O coração tremeu ao não perceber de onde vinha a luz que as iluminava. Quando toquei na primeira, ela disse: os teus olhos iluminaram-nos, agora os teus dedos dão-me vida. Escolheste-me.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

A metáfora da criação

Frantisek Kupka - Criação (1911-20)

Normalmente, vê-se a criação do mundo por Deus, narrada no Génesis bíblico, ou como um facto histórico (o fundamentalismo cristão ou outro), ou como uma alegoria onde se transmite, por imagens, o trabalho de Deus na criação do mundo (o cristianismo aberto à modernidade), ou como uma mera ilusão proveniente da superstição (o ateísmo). A criação pode ser vista, porém, como uma metáfora, uma metáfora utilizada para designar algo que não tem nome. 

E o que não tem nome, neste caso, é o mistério da emergência do mundo. A metáfora não diz nada acerca do conteúdo desse mistério. No entanto, ela dá-nos uma indicação. Indica-nos que esse mistério dá que pensar ao homem. Ela não nos diz nada do que se passou, mas diz-nos que isso nos interessa radicalmente. A criação, enquanto metáfora, aponta menos para uma hipotética actividade de Deus no passado e mais para uma preocupação humana sempre aberta ao futuro. A meditação dessa metáfora não é apenas estética. É também existencial. Compromete aquele que medita nela não com uma fé mas com a própria existência. Daí a sua força.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Poemas do Viandante (572)

Franz Marc - Animal in Landscape (Painting with Bulls II) (1914)

572. touros terríveis

touros terríveis
touros
pintam a paisagem
de sangue
e ocre
e no ócio
do seu furor
desenham
um vitral de vidro
uma salina de sal

(09/08/2016)