terça-feira, 30 de agosto de 2016

Eclipses e conversões

José María Yturralde - Eclipse (1996)

E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (João 1:5)

O acto da conversão está longe de pertencer apenas ao domínio da religião. Ele é inerente a toda a vida espiritual do homem. Thomas S. Kuhn vê a transição, na ciência, de uma matriz disciplinar a outra como uma conversão, pela qual o cientista passa a olhar a realidade e a ciência de uma outra perspectiva. Encontramos isso também na arte e até em fenómenos mais prosaicos como a política. A conversão é sempre a adopção de um outro ponto de vista. Ela não é, contudo, apenas isso. É também o desfazer de um eclipse, a remoção de um objecto opaco que oculta a fonte luminosa. Não se trata apenas de olhar de outra maneira. A própria luz também é outra. Toda a vida espiritual do homem começa - e continua - com o enfrentar de um eclipse, um eclipse onde um ego obscurece a luz que vem do ipse, de si mesmo.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Encontro no bosque

Carlos Morago - Arboleda (1998)

Os bosques são lugares românticos, tem razão. O sussurro do vento no arvoredo, o rumor da água, o jogo infinito de luzes e sombras. Há muito, porém, que não entro em nenhum. Tenho um ar assombrado? Talvez. O que vou contar guarde-o para si. Numa tarde de Junho entrei num bosque. A certa altura, deu-me sono. Sentei-me e encostei-me a um velho carvalho. Quando acordei vi diante de mim alguém. Era muito velho. À minha volta, as árvores tinham desaparecido, o rio secara, apenas uma erva seca e rala... e aquele velho. Olhava-me. Reconheci-o. Não voltarei a entrar num bosque. Não quero tornar a encontrar-me.

domingo, 28 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (570)

Eusebio Sempere - Ritmo lineal (1953)

570. um ritmo roxo

um ritmo roxo
quasi linear
floresce
no centro da linha
um ponto
uma flor
castelos de cartas
que se abrem
e desabam
desabam
no silêncio da cor

(05/08/2016)

sábado, 27 de agosto de 2016

Cataclismos e catástrofes

Javier Calvo - Cataclismo (1986)

Designamos por cataclismo todas as grandes catástrofes naturais e, por extensão, as sociais. Originariamente, no grego antigo e no latim, o termo estava ligado ao elemento água. Um cataclismo era uma inundação para os gregos e um dilúvio para os romanos. O que terá permitido esta transferência metonímica, onde uma palavra, cataclismo, que designa uma parte das catástrofes, aquelas que estão ligadas à agua, passa a designar todo o tipo de catástrofes, sejam naturais ou sociais? Todas as catástrofes têm um elemento fluido. Nelas, aquilo que é sólido perde a sua solidez e arrasta a vida dos homens como uma enxurrada impetuosa. 

Perante a força destruidora da água, pode-se perguntar que sentido haverá que o cristianismo tenha feito da água - através do baptismo - um símbolo central. A resposta óbvia está ligada às propriedades lustrais da água. Há, contudo, uma resposta menos óbvia e mais funda: aquilo que traz a morte também traz a vida. Cataclismos são catástrofes terríveis e dolorosas, mas são ainda uma forma de a vida se afirmar perante e sobre a dor e a morte. O estado líquido onde o mundo parece encontrar-se, onde tudo o que um dia foi sólido parece desabar, apela ao trabalho do espírito para que, no cataclismo universal em que vivemos, inscreva uma nova vida.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Correspondências

Georges Braque - O porto de Havre (1903)

Os portos são lugares especiais, não tanto por estarem ligados à navegação, mas porque condensam em si experiências que se transformaram, ao longo dos milénios, em símbolo da vida espiritual. Esta é feita de partidas e de chegadas. Também nela o viandante aporta, por instantes, em lugar seguro, para depois retomar a viagem num ambiente tão fluido e perigoso quanto a água. É esta correspondência entre a vida material e a vida espiritual que torna cada porto num lugar de fascínio  de rememoração.

Metamorfoses

Paula Rego - Bad Dog (1994)

Melhor fora que tivesse o destino de Gregor Samsa, mas isso só o descobri muito mais tarde. Agora isto... Chegar à consciência e ter palavras. Sinto já saudades dessa vida anterior, onde tinha tudo. Não é que o merecesse. Nem sempre me comportava conforme o esperado, mas a minha natureza justificava tudo. Uma manhã acordei e já não conseguia latir. O meu corpo tinha crescido e na minha boca formavam-se palavras. Levantei-me confuso. Um espelho devolveu-me uma imagem. Percebi que era eu. Não o cão que sempre tinha sido, mas um ser humano. Pior, cheirei-me e confirmei o que vi no espelho. Eu era a minha dona.

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (569)

Antonio Rojas - Caminos de luz (1996)

569. a cisterna da solidão

a cisterna da solidão
enche-se de luz
tão líquida
e tão leve
se as primeiras
chuvas
do outono
trazem de
contrabando
um punhal de sol
uma lua de inverno

(04/08/2016)

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Criar contrastes

Doménec Pascual Badía - Contraste (1970)

Contrastar é uma das acções fundamentais da vida do espírito. Criar um contraste é tornar claro a diferença, retirar algo da névoa da indiferença. Criar, através do acto de contrastar, oposições não é criar conflitos, mas determinar os opostos que, ao diferenciarem-se, se harmonizam. Na vida do espírito, a harmonia nasce da oposição, do contraste, da diferença.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Haikai do Viandante (294)

JCM - Rio Cávado (2016)

no sol de verão
um rio desliza entre montes
água azul e verde

domingo, 21 de agosto de 2016

Jardins e festas

Louis Valtat - Festa no jardim (1888)

O jardim é um símbolo fundador da cultura ocidental. A dor e a morte vêm com a expulsão da humanidade do jardim do Éden. Facilmente se entende a ligação entre jardins e festas. O jardim, ao contrário do espaço que lhe é exterior, é o lugar da felicidade e do prazer inocente, o sítio da festa. Sempre que as festividades humanas se realizam num jardim, há como que uma actualização da felicidade mítica  e do prazer inocente perdidos. Toda a viagem do homem é, em última análise, uma demanda do jardim originário de onde se sente expulso.

sábado, 20 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (568)

Antonio Rojas - Autentica linea de sombra (1996)

568. na lâmina do perigo

na lâmina do perigo
resvala a linha
risca uma 
sombra
entre a luz
da queda
e a noite
da redenção

(04/08/2016)

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

Voltar a si

Mery Sales - Ensimismados (1996-99)

Voltar-se para si mesmo - encerrar-se em si - pode ser sinal de uma patologia, o resultado de uma incapacidade de lidar com os outros e o mundo, o medo do estranho e do ameaçador. O ensimesmamento pode ser, contudo, um processo de cura espiritual, um retorno a si para ultrapassar as múltiplas cisões que o mundo impõe. Mais do que um encerrar-se em si será um voltar a si, um retorno a casa para, de um outra forma e ultrapassada a fragmentação, viver com os outros e no mundo. Onde reside o perigo reside também a cura.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Haikai do Viandante (293)

Javier Martinez de Aguirre - Árbol caído

árvore caída
sobre as águas da ribeira
a vida floresce

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A sombra da solidão

Ernesto Murillo - A través del muro (1997-99)

Foi aqui que cheguei. Outros foram longe, muito longe. A vida corre-lhes bem. Invejo-os? Em tempos, pensei que sim. Hoje, não. A vida brilhante, o mundo como palco onde representam o seu papel. Nunca tive talento para o teatro e a sociedade exige-o. A princípio nem dei por isso, mas lentamente percebi que tinha optado. Fechei-me neste lugar onde não precisava de representar. Foram-me esquecendo, mas eu nunca os esqueci. Com paciência, escavei um buraco no muro. É de lá, sem que me vejam, que os observo. Tornei-me um voyeur. Sou a sombra que os assombra. A minha solidão é a sombra da sua solidão.

terça-feira, 16 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (567)

Charles Marq - A un poète (1984)

567. a poesia é um

a poesia é um
vestígio de luz
a cilada sombria
vinda da terra
o vértice onde dobro
e desdobro
a língua e
uma sílaba
bebe-me o sangue
e canta na secura
do deserto

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Liberdade e solidão

Joan Abelló i Prat - Competición motorista en la Isla de Man (1967)

A vida social é marcada por duas orientações que, aparentemente, entram em choque: a competição e a cooperação. Na verdade, estas formas de viver em sociedade referem-se à necessidade de adaptação ao meio que é dado ao homem para viver. A liberdade está, todavia, para além do competir e do cooperar. Começa na assumpção da solidão como ponto de partida da vida do espírito, a qual não se coaduna nem com o fascínio competitivo nem com o instinto gregário do rebanho. A liberdade, como tudo o que é essencial na vida espiritual do homem, exige o confronto com a singularidade de si mesmo e a solidão que essa singularidade exige.

domingo, 14 de agosto de 2016

O jogo de xadrez

Paul Ackerman - La partie d'échecs

Umas vezes ganha ela; outras, eu. Amei-a? Já não me recordo. O tempo passa e a memória compõe fábulas para aliviar a consciência. De um momento para o outro, descobrimos o xadrez. Dispomos as pedras em silêncio, depois jogamos. Não precisamos de falar. Com o passar dos anos, todos os nossos contactos se resumiram ao jogo. Casámos, descobrimo-lo há muito, para um jogo sem fim. Em cada cheque-mate o meu coração vibra de alegria, como se a matasse. Quando ganha ela, os seus olhos vitoriam a minha morte. O importante é não empatarmos. Isso seria uma espécie de acordo, a destruição da guerra que nos une.

sábado, 13 de agosto de 2016

Sob o império dos objectos

Carlo Carra - Ritmi di Oggetti (1911)

Presos ao fascínio dos objectos, mede-se, de forma pouco meditada, o vigor espiritual de uma civilização pelos objectos nela produzidos ou, quando objectos naturais, por ela valorizados. Os objectos, contudo, possuem os seus próprios ritmos e estes estão longe de ser os ritmos do espírito humano. Seduzidos pelo dinamismo das coisas, os homens esquecem o seu próprio ritmo e alienam-se a si mesmos, ao sujeitar a sua vida espiritual ao ritmo das coisas. Tornam-se, sob o império dos objectos, coisas entre coisas, objectos entre objectos.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (566)

Maria Helena Vieira Da Silva - Batalha de vermelhos e azuis (1953)

566. vermelhos ao vento

vermelhos ao vento
eriçados na
angústia do azul
marcham pelo campo
e esperam
a fénix ou a esfinge
ou a grande batalha
a vir nos dias
de calor
a vir nas chuvas
de inverno

(04/08/2016)

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

A cegueira de Édipo

André Masson - Édipo (1939)

Das múltiplas peripécias da vida de Édipo, a mais decisiva de todas é a que ocorre quando ele se cega. Nem o abandono à morte pelos pais, nem o salvamento miraculoso e a subsequente adopção por Pólibo, rei de Corinto, nem o assassinato do verdadeiro pai, tão pouco a derrota da esfinge e o casamento com a sua mãe e a coroação como rei de Tebas possuem o significado espiritual da cegueira auto-infligida. Em todos os momentos anteriores, Édipo move-se segundo o senso comum que pertencia à sua casta. E esse mover-se no que é comum está intimamente ligado ao seu desconhecimento de si mesmo. A revelação da identidade tonou-o cego para o que é o comum, tornou-o indivíduo e abriu os seus olhos para uma luz que não é visível. Édipo, ao cegar-se, tornou-se indivíduo e sábio. Abandonou o caminho do herói, a procura da glória, e a vida do espírito, como um caminho apenas seu, abriu-se diante dele.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Haikai do Viandante (292)

Gustavo Torner - Átomos - Los Cuatro Elementos. Fuego (1986)

fogo sobre fogo
a campina incendiada
um corvo em agosto

terça-feira, 9 de agosto de 2016

A mulher adúltera e a consciência de si

Max Beckmann - Christ and the Woman Taken in Adultery (1917)

Um episódio central para compreender a dependência da modernidade ocidental - aparentemente, tão pouco cristã - do cristianismo é o da mulher adúltera (João 8:1-11). Dois elementos evidenciam já a ultrapassagem da leitura formal da tradição. Em primeiro lugar, a não condenação da mulher em contradição com a lei mosaica. Essa não condenação, porém, emerge da afirmação da subjectividade dos actores do episódio, dos acusadores e da acusada, e este é o segundo elemento. É a confrontação com a sua subjectividade que leva os acusadores a abandonar o projecto da acusação. A própria mulher é posta diante de si mesma e da sua consciência nas palavras finais de Cristo. O que há de notável neste episódio - mais do que a retórica gasta e inútil do amor - é o confronto entre as estruturas objectivas do mundo social exterior aos indivíduos e a consciência subjectiva. E é nesta que tudo agora se deverá decidir.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (565)

Tal-Coat- Aigu réfléchi (Silex et gris) (1958)

565. cinzento e sílex

cinzento e sílex
destilam
um rumor de cinza
no murmúrio
levitante do lago
na sombra
ferida do fogo
na volúpia
fortuita da floresta

(04/08/2016)

domingo, 7 de agosto de 2016

O fim do mundo

José Gutiérrez Solana - El fin del mundo (1932)

As grandes visão apocalípticas, como as do fim do mundo, são interessantes não por aquilo que anunciam mas pelo desejo que nelas se manifesta. Não nos dizem o que vai acontecer mas o que o homem, em algum momento da sua história, desejou que acontecesse. A profecia do fim do mundo conta-nos, então, que este - o mundo - se tornou de tal modo insuportável que desejámos que ele tivesse um fim. O que o espírito deve aí procurar, para se instruir e e fazer a sua viagem, não é o que vai acontecer num futuro qualquer, mas aquilo que desencadeia o desejo de rejeição, aquilo que encerra a vida espiritual num círculo de ressentimento e dor. 

sábado, 6 de agosto de 2016

O filho pródigo e o homem moderno

Giorgio de Chirico - Ritorno del fliglio prodigo (1965)

Na parábola do filho pródigo (Lucas 15:11-31) há uma equivocidade central que tem o efeito surpreendente de transformar em filho perdido não aquele que dissipou os bens herdados mas o que se manteve fiel à casa paterna e à regra nela existente, isto é, que se manteve fiel à tradição formal. O reconhecimento é dado ao que experimentou o peso e as consequências da autonomia e se reencontrou depois de se ter perdido. Aquele que nunca se perdeu, o que se manteve fiel à forma, fica preso no ressentimento, incapaz de lidar com as mudanças introduzidas pelo tempo. Esta parábola é fundamental para podermos compreender por que motivo a modernidade, com todas as suas características, emergiu no âmbito do cristianismo. O filho pródigo é o arquétipo ancestral do homem moderno, o que faz de cada um de nós filho pródigo em busca de si mesmo.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Caçar o tigre

Charles Lapicque - Chasse au tigre (1961)

Pode-se imaginar a caça ao tigre como um momento fundamental de toda a vida espiritual. Não no sentido literal, mas aquilo que no homem pode ser simbolizado pelo tigre, o seu lado selvagem e perigoso. Mas mesmo aqui, caçar o tigre não significa matá-lo ou sequer domesticá-lo. Caçar o tigre significa fazer dele a energia propulsora que permite vencer a gravidade e tornar-se livre como o vento, esse vento que sopra onde quer.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Poemas do Viandante (564)

Tal-Coat - [Paisaje] (1954)

564. estas paisagens

estas paisagens
maculadas
pelo ocre do ócio
pela oxidação
das tintas
crescem nas margens
do sangue
e ondulam na
cegueira de uma
metáfora
ao desaguar
no porto da solidão

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Metamorfoses

James Whistler - Nocturne: Blue and Silver-Cremorne Lights (1872)

Há uma verdade à luz do dia e uma outra à luz da noite. Não são apenas as coisas que sofrem metamorfoses, que se transformam naquilo que não são. Também a verdade é itinerante, tomando sempre novas figuras. Os homens são tentados a contrariar os seus sentidos, em crer numa imutabilidade eterna da verdade. Esta, porém, sofre de uma inquietação estrutural e nunca se reconhece a não ser nesse acto de se metamorfosear.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Haikai do Viandante (291)

André Masson - Le Couvent des Capucins - Céret (1919)

montanhas azuis
no verão desmesurado
monge em oração

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Casa de Verão

Xaime Quessada - Estio (1960)

Um dia muito quente. Não havia uma sombra ou uma fonte. Quase que morri. De súbito, avistei a casa. Enorme, mas sem portas. Apenas janelas. Uma estava aberta. Aproximei-me, havia gente lá dentro. Chamei, não houve resposta. Entrei pela janela, ninguém olhou para mim. Pareciam estátuas, mas respiravam. Havia água e comida. Sentei-me entre eles, comi e bebi. Adormeci sobre a mesa. Acordei manhã cedo, eles lá estavam imóveis. Tornei a comer e, ao sair, levei água comigo. No dia seguinte, voltei ao mesmo lugar. Não havia qualquer casa, apenas um grande carvalho e uma fonte a rumorejar. É lá que paro sempre que ali passo. Virão, estou certo. Devo-lhes a vida.