domingo, 31 de julho de 2016

Poemas do Viandante (563)

Manuel Gil Pérez - Formas dinâmicas espaciais (1957)

563. o fulgor do fogo

o fulgor do fogo
abre-se em amarelos
e a melancolia
desce pelo espaço
onde espero
o sol de setembro
e a promessa
de um outono
outonado no fogo
que desavindo desce
dos teus olhos

sábado, 30 de julho de 2016

O dom de olhar

Paul Cezanne - Os Jogadores de Cartas (1890-92)

Não sou um jogador. Falta-me o talento e a sorte. Eles sim, são verdadeiros jogadores de cartas. Toda a sua vida está ali entre mãos, pronta para ser deitada sobre a mesa. A minha vida nem a sinto como minha. Como poderia sentar-me à mesa e jogá-la numa última cartada? Eles jogam e eu vejo, e ver é a condição de quem está de fora. Pergunta-me: fora de quê? Fora de mim. Quem está fora de si está fora de tudo, do mundo, da vida, do jogo. Olhe-os. Tudo neles é inocência, pertencem ao instante em que as cartas caem sobre a mesa. Eu? Eu não me pertenço, não sei jogar. Chego aqui e olho. Foi-me concedido o dom de olhar. Tem toda a razão, é uma maldição.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

O desejável do desejo

Paul Ackerman - L'au-delà est désirable

Só o além é desejável. Não apenas porque aquilo que constitui esse além tenha o poder de atrair o desejo, o poder da sedução, mas porque a dinâmica deste desejo é o de nos fazer transcender, de nos raptar da pura imanência onde estamos presos e de nos atirar para o desejável que está sempre além e que por isso mesmo o nosso desejo tanto deseja.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Tempo perdido

Manuel Ruiz Pipó - À la recherche du temps perdu

Em busca do tempo perdido. Não há maior equívoco do que a ideia trazida pelo título da obra de Proust. E o equívoco não nasce do caso do tempo perdido jamais poder ser encontrado. Nasce do simples facto de não existir tempo perdido. Todo o tempo vivido faz parte de um caminho e nunca, na verdade, é perdido, seja qual for o sentido em que se tome a expressão tempo perdido. É sempre um tempo de um caminho onde o que caminho se procura reencontrar.

terça-feira, 26 de julho de 2016

Poemas do Viandante (562)

Franz Marc - Cavalo a sonhar

562. o cavalo sonha-se

o cavalo sonha-se
pesado no
pesadelo da noite
e vê-se vergado
ao peso do sono
ao temor da terra
pisada pelos
cascos fogosos
que acendem o
ardente ardor
da cavalgada

Dançar numa casa de loucos

George Wesley Bellows - Dance in a Madhouse (1917)

Dançar numa casa de loucos poderia ser uma metáfora sobre os transtornos - e eles são sem fim - da vida no mundo. No verdade, porém, a metáfora ilumina a vida espiritual. Num mundo caótico e irrazoável, a vida do espírito é como uma dança, na qual os que dançam se entregam, sem premeditação ou projecto, ao ritmo da música num espaço tornado caótico pela presença de todos os que dançam.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Haikai do Viandante (290)

Claude Monet - Summer, Field of Poppies (1875)

campos de papoilas
o sol bravio do verão
uma sombra cai

domingo, 24 de julho de 2016

No mundo dos híbridos

Max Ernst - La bicicleta gramínea (1920-21)

A aventura espiritual da arte moderna, tantas vezes mal entendida, tem a sua raiz na liberdade do espírito. É esta liberdade, servida pela faculdade da imaginação produtora, que permite um exercício de hibridação como aquele que o quadro de Max Ernst mostra: hibridar o reino dos artefactos mecânicos com o reino vegetal. Esta produção híbridos têm uma longa tradição que remonta às antigas mitologias. Ela revela-nos que, para além da estrita necessidade - que na arte tomou a forma da imitação, uma servidão ao dado -, existe um reino que, não sendo do domínio do caos nem da arbitrariedade, revela uma ordem mais livre e mais inesperada. Uma ordem onde o espírito, como o vento, sopra onde e como quer.

sábado, 23 de julho de 2016

Poemas do Viandante (561)

Winifred Nicholson - Abstracct sequence (Variation on Cyclamen and Primula) (1935-36)

561. frias florescem

frias florescem
as flores sibilantes
na sílaba
deste sábado
e na cintilação
do cíclame
reflecte-se
a prímula
da primavera

sexta-feira, 22 de julho de 2016

A flor cortada

Giuseppe Pelizza Da Volpedo - Flor cortada (1896-1902)

Sonhei-as. Durante meses, tive o mesmo sonho. Um bosque ameno e um cortejo matinal de raparigas vestidas de branco. À entrada dispunham-se em procissão e caminhavam. Iam em silêncio. Quando chegavam ao centro do bosque, eu acordava e nunca descobria aonde iam. Uma noite, decidi não me deitar e, pela aurora, entrei no bosque. No centro, havia uma clareira. Escondi-me. Acabaram por chegar. A luz sombreada iluminava-as. Eram belas como no sonho. A que vinha na frente cortou uma flor e, para meu espanto e terror, saiu da clareira. Caminhou para mim e estendeu-me a mão. Esperávamos por ti, disse. Olhei. Era o meu rosto que eu via na flor cortada.