domingo, 10 de julho de 2016

Aprendizes de Ícaro

Remedios Varo - Aprendiz de Ícaro (1954)

Uma pequena parte dos seres humanos tem uma inclinação claramente voltada para baixo, como se neles habitasse um desejo irreprimível de se afundarem do domínio obscuro das potências telúricas. Tudo o que tocam fica contaminado por esse desejo de diluição no fundo do ser. A grande maioria dos homens olha horizontalmente o mundo. Temem o mundo de baixo e não aspiram olhar para cima. O domínio da terra é o seu horizonte de expectativa. Outros homens, porém, olham o alto e aspiram a elevar-se da condição terrestres. São os aprendizes de Ícaro. Se o desejo espiritual não for mediado pela graça da sabedoria correm o risco de se afundarem sem remissão naquele domínio obscuro a que são, por natureza, tão avessos.

sábado, 9 de julho de 2016

Poemas do Viandante (558)

Frantisek Kupka - Aguatinta (1913)

558. círculos de vermelho

círculos de vermelho
circulam no
sangue aberto
ao mistériazul
que desperta
rumores de água
onde desagua
uma lágrima
aguada de azul
quase vermelho

(05/07/2016)

sexta-feira, 8 de julho de 2016

A vinda da noite

Piet Mondrian - Landschap bij nacht (1907-08)

A noite nasce como um paisagem exterior, mas lentamente cresce para dentro dos olhos, inundando o espírito, trazendo com ela o silêncio, esse silêncio onde o pensamento se cala, e uma grande quietação se derrama naquele que perdeu toda a luz. Agora está pronto para subir ao seu monte Tabor,

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Haikai do Viandante (288)

Aubrey Phillips - A Calm Evening

noites de carvão
nascem ao entardecer
frio e escuridão

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Dialéctica do livro

John Yardley - Choosing a book

Num primeiro momento, estamos convencidos que escolhemos os livros que nos cabem ler para nos apropriarmos daquilo que eles contêm. Com a passagem do tempo, a ilusão desfaz-se e antropomorfizamos esses mesmos livros: são eles que nos escolhem. O segundo momento da dialéctica é o do magnetismo, do poder magnético que uma obra exerce sobre o seu potencial leitor. A sabedoria começa a nascer quando se descobre a unilateralidade de ambos os momentos. Nem nós escolhemos os livros, nem estes nos escolhem a nós. O terceiro momento é o da compreensão que o livro nos é enviado como um mediador. Aquele que envia e aquele que recebe são postos em relação pelo livro. Para aquele que recebe, o livro é sempre a voz da alteridade. Uma vezes surge como promessa; outras, como injunção.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Poemas do Viandante (557)

Kazimir Malevich - White Square on White (1918)

557. a sombra sombria

a sombra sombria
do branco
desce na
brancura da tela
e desenha
um campo
florido de forças
a crescer na alma
tão alva
e tão nívea
e tão branca

(28/06/2016)

segunda-feira, 4 de julho de 2016

O ano de 1914

Marc Chagall - O diário de Smolensk (1914)

Que ano este. Tem razão, mas todos os anos são bons para começar uma guerra. Sim, é verdade, mas alguns são mais propícios. As notícias parecem confirmar que estamos num desses anos. Os corações dos homens estão sedentos de aventura, os jornais estão inflamados e a temperatura dos quartéis parece subir a cada dia que passa. Os homens têm de ir para as ruas, ela está desejosa de um grande festim. Ela? Sim, ela. Enfada-se com a rotina e quer excitação, então murmura, com aquela sua voz rouca, ao ouvido dos homens e estes perdem a cabeça. Literalmente. Nunca falha. Ela vai enriquecer. Os próximos anos serão de grande colheita.

domingo, 3 de julho de 2016

Fechar a porta

Fernand Khnopff - I Lock my Door upon Myself (1891)

Há no culto moderno do self, iniciado por Descartes com o cogito como princípio, ainda que garantido por Deus, da certeza inabalável, uma infantilidade que raramente é notada. O centramento sobre si mesmo é uma característica da infância. A maturidade chega pelo descentramento, pela descoberta de que não se é deus, e, de forma mais radical, pela descoberta de que, na verdade, não se é nada. Esta última descoberta pode ter efeitos paradoxais. Pode gerar um grande alívio, uma libertação, ou pode conduzir a que o self se refugie em si mesmo, na sua nulidade, e feche a porta, para que a sua certeza infantil resista ao confronto com a realidade.

sábado, 2 de julho de 2016

Origem e originalidade

Paul Klee - Ab ovo (1907)

Uma das grandes tentações da vida espiritual, seja em que área for, é pensar que se vai começar alguma coisa desde a origem, sendo esta percebida como um começo absoluto. Esta tentação tem duas faces. Em primeiro lugar, pensa que existe uma origem absoluta à qual se possa chegar. Em segundo, crê, de forma ingénua, que se pode saltar por cima da própria sombra, isto é, da história. Não podemos contudo, dizer que não há um momento inicial, uma origem, a partir do qual se faz um certo caminho. A origem existe, mas existe a cada momento. Cada momento é originário e convoca os seres humanos não apenas a mergulhar nessa origem actual como a serem, por isso, originais.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

Poemas do Viandante (556)

Gerardo Rueda - Azul y Rosa (1970)

556. um súbito azul

um súbito azul
arde ardente
no rumor
de uma rosa
no voo raso
da gaivota
presa na pétala
rosazul do 
céu de anil
do mar de luz

(28/06/2016)