quinta-feira, 30 de junho de 2016

Haikai do Viandante (287)

William Turnar - Mortlake Terrace, residència de William Moffat, tarde de Verão (1827)

tardes de verão
tecem-se na luz das águas:
sol, barcos e sombras

quarta-feira, 29 de junho de 2016

A longa espera

Jorge Apperley - Una bailarina del antiguo Egipto (1915-1916)

Foi em meados dos anos oitenta do século passado que começou. Nas primeiras vezes, tudo era impreciso, o contorno dos corpos, a melodia dos instrumentos, o movimento da bailarina. Depois, parece que aprendi a sintonizar-me. Mal adormecia, entrava no sonho. Chegava a ouvir a respiração delas e sentir o odor dos corpos. Ardia de desejo. Passaram décadas. O tempo não passou por elas. Tenho cabelos brancos, mas elas voltam sempre. Também lhes fui fiel. Uma noite, em que a febre do desejo me atormentou mais que o habitual, uma delas sussurrou-me numa língua que nunca ouvira: não tenhas pressa, estamos à tua espera. Também eu as aguardo.

terça-feira, 28 de junho de 2016

Do deserto interior

Charles Lapicque - Désert (1962)

Teme-se mais do que o deserto real o deserto que cresce dentro de nós. Olha-se para vida do espírito como um acumular de informação. Confunde-se a sabedoria com a erudição ou com a destreza argumentativa. E está aí a raiz daquele temor. Chega-se a uma altura. porém, que se descobre que nada é mais importante do que o deserto interior. Só aí, nessa vastidão desolada, se pode ouvir a voz trazida pelo vento.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Poemas do Viandante (555)

Modesto Ciruelos González - Abstracção (1975)

555. ergue-se o texto

ergue-se o texto
da textura
do papel
um traço de noite
uma mancha
maculada
de tinta e trevas
e uma nuvem
de sentido
cobre e descobre
a luz tão lenta
e quase luminosa

domingo, 26 de junho de 2016

Mudanças

Ludwig Meidner - Revolution (1912)

Eram outros tempos e eu... eu era outro. Tem razão, somos a cada instante outros, mas há um momento em que tomamos consciência de uma alteração nas nossas crenças. Eu acreditava na revolução. Um instinto ancestral acendia-se em mim perante as multidões e o esvoaçar das bandeiras. Não fez essa experiência? Então não pode compreender. Como é que mudei? Diz-me que perdi a fé em revoluções e, por isso, mudei. Está enganado. Foram as revoluções que perderam a fé em mim. Fui abandonado pelo espírito revolucionário e deixei de sonhar com bandeiras. Agora vejo o tempo passar e só espero que passe lentamente.

sábado, 25 de junho de 2016

Tempestade

Jeffrey Smart - Approaching storm by railway (1955)

Pode-se olhar a tempestade do ponto de vista estético e encontrar nela a encarnação do sublime. Pode-se encará-la do ponto de vista ético como um teste à coragem daqueles que por ela são apanhados. O sublime e a coragem, porém, estão longe de ser o essencial ao atravessar a tempestade. A revelação fáctica da nossa fragilidade e da nossa finitude são o fundamental e é essa revelação que permitirá fazer a experiência plena do extraordinário que irrompe do ordinário, do extra-normal que irrompe na norma. A tempestade é um lugar de epifania.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Música e vida

John Yardley - A break in Rehearsal

Tome-se a música como uma metáfora da vida. Na analogia que sustenta a metáfora, porém, há que considerar apenas  a ideia de um fluir dos sons de um princípio em direcção a um fim. Aquilo que se deve excluir, porém, é a ideia de ensaio. Os músicos ensaiam uma e outra vez até chegarem ao palco. Nós caímos no palco e sem qualquer ensaio temos de levar o concerto ou a sinfonia do princípio até ao fim. Sem pauta e, muitas vezes, sem maestro.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Poemas do Viandante (554)

Antonio Tápies - "70"

554. números são navios

números são navios
no deserto
onde te espero
palavras perdidas
na rua
e no rumor
do desespero
uivos que uivam
no silêncio
e
na cinza dos ciprestes

quarta-feira, 22 de junho de 2016

A santíssima trindade

Raoul Dufy - The Three Umbrellas (1906)

Noutros tempos chamavam-lhes sombrinhas. Ainda há quem chame? Pois, não sei. Estava retirado do convívio com o mundo, como sabe, e comecei a perder as referências. Como lhe dizia, aquelas sombrinhas eram a minha santíssima trindade. Daqui, aguardava, que sob a inclemência do sol, elas passassem. Vinham como uma promessa. Sempre pela mesma ordem. Aqueles chapéus-de-sol eram uma bandeira, a bandeira da minha pátria. Passavam lentamente. Por vezes, trocavam breves palavras com alguém conhecido. Nunca lhes vi o rosto. Oh não, não era Eros que falava em mim. Passavam e eu sentia-me salvo no vexame da minha prisão.

terça-feira, 21 de junho de 2016

Um corpo a corpo

Thomas Hart Benton - Boxing match (1930)

Um corpo a corpo, um combate de boxe, e não o refúgio numa hiper-realidade ou num qualquer além que a imaginação humana, demasiada humana, está sempre pronta a criar para nos proteger da crueza da existência. Falo da vida espiritual, seja qual for o âmbito em que esta se desenrole. Não é uma fuga mundi, mas um estar no mundo. Não é o lugar da paz mas o da espada. Começa sempre com um corpo a corpo consigo mesmo. A vida espiritual não é tema para revistas cor-de-rosa.