terça-feira, 10 de maio de 2016

O bezerro de ouro

Emil Nolde - Danza alrededor del becerro de oro (1910)

A dança à volta do bezerro de ouro. Não se trata de dançar em torno de um ídolo material, da estátua de um animal elevado à condição de um deus. Trata-se de dançar em torno de si-mesmo, não para chegar ao interior de si, mas para se tomar como o ídolo que se deve, a cada momento da vida, adorar. O bezerro de ouro não existe fora do homem. Habita-o, é esse hóspede indesejável a quem, quando tomamos a palavra, nos referimos como eu.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Céu negro

Jacqueline Lamba - Ciel Noir (1986)

A tonalidade negra do céu anuncia um fenómeno tempestuoso, mais ou menos intenso, mas sempre em contradição com o que o hábito faz desejar ao homem como normal. Na vida espiritual, porém, a ruptura com a normalidade, o pôr em causa o hábito e o desafio das rotinas é um elemento central na criação de alguma coisa que torne a vida mais digna de ser vivida. O céu negro ou a negra noite do espírito são, desse modo, não o pronúncio de uma desgraça, mas o sinal de que uma graça se apresta para descer sobre o homem.

domingo, 8 de maio de 2016

Poemas do Viandante (542)

Elmer Bischoff - #88 (1985)

542. caem as cores

caem as cores
na inocência
da tela e
abrem círculos
para que estrelas
desçam por
elas e
sejam sombra
verde e  laranja
na cintilação
da infância

sábado, 7 de maio de 2016

A elasticidade da vida

Umberto Boccioni - Elasticity (1912)

Podemos sempre pensar que a vida quotidiana, com o seu cortejo de necessidades, logros e submissões, é um exercício contínuo de deformação, no qual as forças exteriores se conjugam para distorcer a figura humana. A vida espiritual, seja qual for o seu âmbito, é a prova da elasticidade do indivíduo, a propriedade de restaurar na sua forma originária o que vida deformou e tornou disforme. Se esta esta vida espiritual, porém, estiver completamente morta, o destino do disforme é a monstruosidade.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Em configuração

Joost Schmidt - Estudio de una figura (1930)

Chegar à sua própria figura, configurar-se, é o destino daquele que foi lançado na vida. A vida espiritual dos homens não é outra coisa senão uma preparação da sua figura, um conjunto de ensaios e erros até que, inopinadamente o rosto, o seu verdadeiro rosto, brote na luz da clareira. Configurado, o viandante lança-se de novo ao caminho. Novas configurações o esperam.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Numa noite de Verão

Edvard Munch - Os solitários (1907)

As noites de Verão são propícias a acontecimentos singulares. Tão estranhos que aqueles que os vivem preferem esquecê-los. Também eu quis esquecer o que me aconteceu numa dessas noites de calor. Não fui, não sou capaz. Resignado, sento-me e deixo-me assaltar pela memória. Ela, que vi mil vezes na sua beleza vibrante, ali tão perto e tão tocável. Caminho ao seu encontro, o coração descompassa-se ansioso, um cão rosna ao longe, e a minha mão desce para o seu ombro, tão branco. Toco-lhe e sinto a pele a deslizar nos meus dedos. Ela vira-se lentamente. Ainda hoje não me atrevo a contar o que vi.

quarta-feira, 4 de maio de 2016

Haikai do Viandante (283)

Jean François Millet - A Primavera (1868-1873)

um céu de carvão
desce sobre a primavera
água e sol na terra

terça-feira, 3 de maio de 2016

A tempestade interior

Edvard Munch - The Storm (1893)

A tempestade é sempre um desafio que a vida coloca ao homem. Não propriamente a tempestade exterior, a exibição de violência e desarranjo dos elementos climatéricos, mas a tempestade interior, aquela que se abate sobre o homem, quando ele menos espera. Ao desarticular as estruturas em que uma vida se tinha consolidado e tornado em mera rotina, a tempestade interior abre o caminho para si mesmo, caminho alienado nos hábitos quotidianos.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Do caminho e da viagem

Gonzalo Torné - Camino infinito II (1997)

A viagem que cabe a cada homem parece finita, mas o caminho é sem fim. A natureza infinita do caminho pode significar que este é tão amplo que suporta todas as viagens finitas do homem. Pode ser sinal, porém, de outra coisa: tal como o caminho é infinito, também a viagem que cabe a cada um não tem fim.

domingo, 1 de maio de 2016

Poemas do Viandante (541)

Franz Marc - Blue Horse with Rainbow (1913)

541. Cavalazul

um cavalazul
galopa
veloz e vítreo
sob a chuva
verdanil
de um verão
levedado
na estrela do sul