sábado, 30 de abril de 2016

Dos náufragos

Andrés Cortés Aguilar - El Naufragio

É a condição de náufrago aquela que melhor retrata a situação do homem no mundo. O que nos ensina acerca da condição humana a metáfora do naufrágio? Duas coisas. A primeira, a mais evidente, mostra-nos que a linha que separa a vida da morte está sempre pronta a partir-se. A segunda, a mais surpreendente, mostra-nos que, tal como a água não é o elemento do homem, o mundo, onde ele é um eterno náufrago, também não é a sua casa.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Da ansiedade

Max Klinger - Ansiedade

A ansiedade é o sintoma, senão um símbolo, de um forte apego aquilo que é exterior e não se controla. Nela inscreve-se a vontade de domínio. Uma vontade de domínio defraudada e ultrapassada por tudo aquilo que a vida traz e não é dominável. A ansiedade é sempre o sinal de uma ilusão, a ilusão de um poder que se deseja possuir mas que não existe.

quinta-feira, 28 de abril de 2016

A luz da clareira

Jacqueline Lamba - Clareira (1942)

A clareira é o lugar onde se manifesta aquilo que a sombra oculta. Trazer à luz da clareira é o fim supremo que se coloca à vida dos homens. É na clareira que o que nunca foi pensado, o que nunca foi dito, o que nunca foi descoberto ganha vida. Cada homem, porém, é para si mesmo o mais difícil de trazer à luz da clareira.

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Da janela e da porta

Raoul Dufy - Open Window (1928)

A janela é um lugar de transição entre o mundo interior e o mundo exterior. Como metáfora de uma fronteira é, todavia, diferente da porta. A porta convida ao exercício da entrada e da saída, ao jogo da acção, à mudança contínua entre mundos. A janela, por sua vez, traz consigo uma dimensão mais espiritualizada. Apela à contemplação. E é nela que o viandante encontra a viagem mais difícil e a que contém os maiores perigos. 

terça-feira, 26 de abril de 2016

Poemas do Viandante (540)

Arshile Gorky - Agonia (1947)

540. Agonia

a luz destila-se
em raios
vermelhos
rubros
estrelas
de sangue a
regurgitar
a noitiagonia

segunda-feira, 25 de abril de 2016

Dia de festa

Raoul Dufy - Dia de Festa (1906)

A cidade esqueceu-se de si e abriu-se a esta gente que festeja. O quê? Ele já nem sabe. Talvez um santo, talvez a história, talvez outra coisa qualquer. Pouco lhe importa. Caminha só entre as pessoas e vê nos seus olhos um brilho baço, uma luz sombria que choca com a sua solidão. Também ele festeja. No silêncio a que se abandona, ouve uma música que o chama. Então começa a dançar perante os olhos atónitos de quem o vê. Ergue-se nos ares, rodopia e todo o seu corpo é vertigem na noite. Fazem um círculo à volta da sua solidão e ele dança, dança com a noite, com o frio, dança consigo até que, exausto, se deixa cair nos braços que, para o aparar, a morte lhe estende.

domingo, 24 de abril de 2016

Haikai do Viandante (282)

Pierre Bonnard - Premier printemps (1908)

chega a primavera
desce dos céus uma luz
ilumina a terra

sábado, 23 de abril de 2016

Da loucura

Alfonso Daniel Rodríguez Castelao - A louca do monte (1912

Em cada ser humano habita a loucura, um princípio de irrazoabilidade. Perante ela, desenham-se três caminhos. O de se deixar submergir pela loucura. O de derrotá-la, recalcando-a dentro de si mesmo, como uma grande e ameaçadora sombra, cujo nome sequer se pode pronunciar. O de estabelecer uma aliança com a sua própria loucura e utilizá-la como a energia que a viagem necessita para se abrir a sempre novas realidade.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Poemas do Viandante (539)

Paul Klee - A garden for Orpheus (1926)

539. na lira de orfeu

na lira de orfeu
ouvem-se aves
no jardim
uma canção
de vento
o vendaval
que se ateia
e te leva daqui

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Da risibilidade

Edward Hopper - Two Comedians (1965)

A velha distinção aristotélica entre tragédia e comédia diz que a primeira trata dos homens superiores e a segunda, dos inferiores. O brilho desta distinção poderá fazer cair num equívoco aquele que se entrega a uma vida do espírito. Não é porque se é um ser superior que as coisas espirituais lhe cabem. É porque se é inferior, risível e se tem a plena consciência dessa risibilidade que se abre um caminho espiritual. A plena consciência dessa natureza digna de ser satirizada e ridicularizada é condição necessária para uma vida espiritual, seja qual for a sua dimensão. Saber que se é digno do riso dos outros é o ponto de partida para a viagem de descoberta de si.