quinta-feira, 31 de março de 2016

Haikai do Viandante (279)

Benvenuto Benvenuti - Inverno - Mattina (1905)

as manhãs de inverno
descem sobre os ciprestes
fogo frio na terra

quarta-feira, 30 de março de 2016

Para lá dos manifestos

Boris Kustodiev - Reading the Manifesto (1909)

A vida do espírito começa para lá de todos os manifestos. Um manifesto é um exercício exacerbado de ruído, a concentração de desejos e ilusões. A vida do espírito brota do silêncio, da solidão, da pura presença perante aquilo que é. O manifesto dirige-se ao rebanho e é sempre a afirmação do poder, ou da sua ânsia, de um pastor. A vida do espírito repousa na singularidade de cada um, quanto muito no encontro de duas singularidades. Nela, não há lugar para manifestos.

terça-feira, 29 de março de 2016

Poemas do Viandante (534)

Edna Araraquara - Amendoeira

534. da brancura da flor

na brancura da flor
eleva-se um
aroma
paira 
na sombra
trémula
de uma pétala
coberta de luz
coberta de assombro

segunda-feira, 28 de março de 2016

Uma dança infinita

Cruzeiro Seixas - Dança Infinita (2007)

Propulsionado pela música, aquele que dança enfrenta o império da gravidade e eleva-se, por instantes, acima da terra, como se do alto uma voz o chamasse. A gravidade devolve-o ao chão, mas a música, a voz que vem do alto, não pára de chamar. E, mais uma vez, o corpo ergue-se e enfrenta aquilo que o arrasta para baixo numa ânsia infinita de responder ao chamamento. A vida do espírito não é outra coisa senão uma dança infinita.

domingo, 27 de março de 2016

A ressurreição

El Greco - Ressureição (1605-1610)

A pintura de El Greco permite perceber uma dimensão da ressurreição do Cristo para além das leituras literais correntes. O que se vê é a elevação de Cristo acima das contingências temporais e mundanas, as quais estão representadas pela confusão e pelo espanto que se apodera dos restantes figurantes da cena. Ressuscitar é então um elevar-se acima das condições do espaço e do tempo, às quais estamos submetidos e são o limite das nossas possibilidades. A ressurreição de Cristo surge como um desafio aos limites e uma ultrapassagem das condições mundanas do homem.

sábado, 26 de março de 2016

Ao pôr-do-sol

Giovanni Boldini - Angeli

A história conta-se em poucas linhas. A verdade fica à consideração do leitor. Ia pela praia, num daqueles passeios que se dão pelo entardecer. Como sempre, caminhava para a duna atrás da qual - temos a ilusão - o Sol se põe. Não havia vento e a ondulação era suave. As gaivotas, por terra, calavam-se. O dia entregava-se e o crepúsculo descia pela baía. Ao desaparecer o Sol, elevou-se não a noite mas luzes em convulsão. Não era uma tempestade. O ritmo do coração acelerou quando decidi subir ao cume da duna. As luzes convulsas não cessavam, mas tudo era silêncio, um silêncio pesado. Ao chegar ao cimo, o leitor é livre de não acreditar, vi enormes seres alados. Havia neles, na face e no corpo, demasiada humanidade. Eram anjos. Flamejantes, coriáceos, combatiam entre si.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Haikai do Viandante (278)

Claude Gellée - Amanhecer

vem sobre os campos
a fria luz da madrugada
o dia anuncia-se

quinta-feira, 24 de março de 2016

Da periferia

Pierre-Albert Marquet - Arredores de Paris (1904)

Aquele que escolhe o caminho da contemplação procura a periferia e não o centro. Ser periférico, estar no arrabalde. A vida do espírito é assim um exercício de descentramento e de abandono de si. A humildade é o lugar da contemplação. A glória, o da coisa contemplada. Até que contemplado e contemplador sejam um e único, até que não haja mais periferia nem centro.

quarta-feira, 23 de março de 2016

A grande tentação

Max Beckmann - Tentação (1936-37)

Há neste mundo as pequenas tentações e as grandes tentação. A maior das tentações, contudo, é a de se eximir a qualquer tentação. Eximir-se à tentação significa esquivar-se ao confronto com a realidade, fingir que não se está presente no mundo e que não se está sujeito ao regime da nossa finitude e a sua concomitante fragilidade. A maior tentação é a de se iludir a si mesmo.

terça-feira, 22 de março de 2016

Poemas do Viandante (533)

Emilio Pettoruti - Armonía - Movimiento Spazio (1914)

533. Um rápido

Um rápido 
movimento 
de mãos
abre rugas, 
tão ruidosas,
no espaço negro
onde do caos 
irrompe
a súbita 
harmonia.