segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

A manifestação do espírito

Thomas Hart Benton - City Building (Study for America Today) (1930)

O mundo material construído pelo homem exerce um poderoso fascínio. Esse fascínio nasce da aparência plástica que seduz o olhar. Esta sedução traz nela um perigo. Ficar preso na azáfama das aparências, na sua exuberância, e esquecer que tudo o que assim se oferece aos sentidos não é outra coisa senão o operar do espírito. A realidade - se quisermos usar esse equívoco conceito - está para além daquilo que captamos através das sensações. Ela reside não na matéria mas no espírito que age sobre ela e lhe dá uma configuração. O que vemos - ou que sentimos, melhor - não é mais do que uma manifestação da vida espiritual.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

O poeta e o anjo

Mário Eloy – O Poeta e o Anjo (c. 1938)

Recosto a cabeça no regaço dela e penso. Onde se inscreve a fronteira entre o poeta e o anjo? Dói-me, dói-me todo o corpo. Os anjos, esses, não têm dores. Os anjos não têm corpo, diz-se. Na cabeça daqueles corpos que não são corpos há, porém, ritmo, uma música, a música das esfera celestes. E eu oiço essa música. Toma-me por dentro, corre por artérias e veias e explode-me no coração. É nesse momento que escrevo. Escrevo o que oiço. Escrevo a sombra do cântico dos anjos, escrevo o eco longínquo da música das esferas celestes. Agora que tudo se apaga, agora que a minha cabeça repousa, por uma última vez no regaço dela, já não oiço música alguma. Abro os olhos e vejo um anjo. Um anjo que ainda não sou mas que serei quando...

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (529)

Albuquerque Mendes - Os Frequentadores do Cabaret Voltaire (1983)

529. No velho cabaret

No velho cabaret,
eu dançava
preso na agonia,
suspenso
de um corpo,
de um copo de vinho,
da luz que tece
a sombra da noite,
a carícia da morte.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (528)

Caspar David Friedrich - Winter Landscape with Church (1811)

528. Na paisagem

Na paisagem
invernosa
descubro
a velha cruz
que na terra
fez cair
como neve
uma mancha
pura de luz.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Uma mesma realidade

Lima de Freitas - O Contemplador de Mundos (1997)

Um dos passos fundamentais na vida do espírito é a compreensão do equívoco que separa contemplador e coisa contemplada. Esta dualidade funda-se na que opõe produtor e contemplador. Na verdade, em qualquer área da vida do espírito, aquele que produz, aquele contempla e a coisa contemplada são uma mesma e única realidade, fruto do acto de produção que é ao mesmo tempo um acto de contemplação ou vice-versa.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Confronto entre a vida e a vida

Artur Bual - Pietá

O filho morto nos braços da Virgem - essa eterna cena que dá pelo nome de Pietá - deixa-se captar, na pintura de Artur Bual, em toda a complexidade que ela contém. Não se trata apenas da dor humana sentida pela mãe que perde o filho, mas da situação equívoca onde esse filho se encontra. Essa equivocidade é idêntica à da semente que, morta na terra, ressuscita com e para uma outra vida. Também na morte do Cristo, no acolhimento que os braços da mãe fazem do filho morto, se joga o terrível - pois inclui nele a morta, por simbólica que ela seja - confronto entre duas formas de vida. Na Pietá de Bual - no seu gestualismo figurativo - capta-se o momento onde, na morte, essas duas vidas se misturam, se confrontam e se separam.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Haikai do Viandante (273)

Mário Cesariny - Linha d'Água

nessa linha d'água
ergue-se a luz de setembro
sonho e miragem

A grande utopia

Adriano Sousa Lopes - Pastor na Serra da Estrela

Uma longa tradição - religiosa e política - associou aquele que dirige um grupo humano à figura do pastor. Este tem como missão cuidar do rebanho, evitar a perda de alguma ovelha. O pastor era a metáfora, num mundo tradicional, para o mestre espiritual e o chefe político. A modernidade aniquilou essa velha relação entre o pastor e o rebanho. Contudo, ela não destruiu a figura do pastor. Pelo contrário. Tornou-a um imperativo para cada homem. Cada um deve ser o pastor de si mesmo, cuidar de si espiritual e materialmente. Auto-governar-se. É esta - e não a sociedade igualitária - a grande utopia do tempos modernos.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Dentro do labirinto

Eduardo Batarda - Composition (1988)

Cheguei ao extremo da razão. A partir daqui tudo perde a luz clara trazida por uma arquitectura sóbria e rectilínea. A minha casa, a rua onde vivo, a cidade... Tudo isso é um labirinto. Fio de Ariadne? Para quê, se a saída do labirinto me leva a um outro, e a saída deste me precipita num novo labirinto? Na verdade, descubro-o agora, não há retorno ao palácio iluminado pela luz da razão. Dou um passo na nova escuridão e o meu coração estremece. A noite caiu sobre mim e nada mais resta do que caminhar, mãos a roçar as paredes e deixar-se levar pelo instinto. O labirinto está dentro de mim, o labirinto sou eu, e no fundo do meu coração - sempre o soube - habita o Minotauro. Está sentado e, na tranquilidade das trevas, espera-me.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Poemas do Viandante (527)

Alfred Stevens - The Bath (1867)

527. No murmúrio

No murmúrio
dos teus olhos
há um poço
de água funda,
onde deixei cair
a rosa que colhi
nas margens do rio
que corre
no teu sangue.