segunda-feira, 30 de novembro de 2015

A queda originária

Mère Geneviève Gallois - Adão e Eva expulsos do paraíso (1926)

A racionalização histórica de um dos mitos fundadores da nossa cultura - o mito de Adão e Eva - acabou por ocultar aquilo que nele era efectivamente operante. Não se tratava tanto de constituir uma narrativa explicadora da nossa condição mortal e sofredora, mas antes de uma chamada de atenção para a nossa realidade actual, aquela que se vive a cada instante. A cada instante o homem é arrastado pela queda originária. Por queda originária não se deve entender uma queda situada num ponto determinado do tempo, no início dos tempos. A queda é originária porque está sempre na origem de uma existência degradada e impotente para realizar aquilo a que é chamada.

domingo, 29 de novembro de 2015

Signo sinal 9. Ler os sinais

Winslow Homer - O sinal de perigo (1890)

A vida do espírito é um percurso entre sinais. Não há erro maior que o desprezo pelos sinais que, a cada instante, nos são enviados. Onde? Através de quê ou de quem? Em qualquer sítio e em não importa que situação. Ler os sinais é um exercício minucioso que nunca está completamente aprendido. Os sinais são, por vezes, tão dolorosos que não queremos olhar para eles. Eles, porém, não deixaram de se manifestar e de se oferecer à leitura.

sábado, 28 de novembro de 2015

Haikai do Viandante (259)

Emil Hansen - Entardecer de Outono (1924)

a noite que cai
é um pássaro ferido
o silêncio canta

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

Fim do mundo

José Gutiérrez Solana - El fin del mundo (1932)

O tema escatológico do fim do mundo nunca deixou de incendiar a imaginação dos homens, e isso continua a verificar-se nos dias de hoje. Essa grande acontecimento apocalíptico, porém, não deixa de ser uma interpretação fantasiosa da vida espiritual dos homens. A experiência espiritual de cada homem não é outra coisa senão uma sucessão de fins do mundo, pois a cada passo no caminho a visão do mundo converte-se e passa-se a vê-lo de outra maneira, liquidando assim o mundo anterior. Cada novo mundo que o viandante alcança significa a morte daquele que deixou para trás.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

O sol da manhã

Edward Hopper - Morning Sun (1952)

Acabou a noite. Sento-me e espero. Esta estranheza do dia que começa, a música que se aproxima vinda de longe, as praças lá fora. Enquanto dormia, estas praças estariam lá? Esperariam pelo meu olhar ou pelo sol da manhã? Tenho de me levantar. Aguardam-me e eu tenho de pôr a cabeça em ordem. Tantos pensamentos, as mãos deslizam, e os sonhos. Sim, o pior são os sonhos. Apanham-me a dormir e apoderam-se do meu sono, para depois desaparecerem, deixando um vestígio difuso. Um corpo alado: um pássaro, um anjo? Não sei, e a luz matinal obscurece tudo, entra no quarto, ilumina-me o corpo e apaga a noite. Oiço um piano. As minhas mãos deslizam nas teclas, enquanto os meus olhos, cegos pelo sol da manhã, procuram em desespero a pauta.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

O sonho

 Franz Marc - O sonho (1912)

O sonho, o que fazer com ele? Para além de visão profética do futuro a acontecer ou de forças pulsionais inconscientes que, motivadas por um passado traumático, se revelam, o sonho é uma pura presença que vale por si mesma e não tanto como uma manifestação de um passado realizado ou de um futuro a acontecer. Como um quadro, um poema ou uma sonata, o sonho dá-se a fruir como um objecto estético frágil e efémero, uma combinação momentânea do espírito, que, inquieto, logo sopra noutra direcção. Exige não uma terapia ou uma acção preventiva, mas a mais pura das contemplações.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Ordem e desordem

Paula Rego - A ordem foi estabelecida (1960)

A ordem e a desordem. É sempre o espírito que, sobre o caos, estabelece a ordem, para, logo de seguida, transformar essa ordem em desordem, suprimindo as formas e deixando a matéria livre para que uma nova ordem se possa manifestar. Quem pensar que a vida espiritual é um lugar de uma ordem eterna equivoca-se. O espírito é a pura inquietação que se busca e, nessa busca, erige e destrói infinitos mundos. Como o vento, o espírito sopra onde quer.

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Haikai do Viandante (258)

Xavier Valls - Almendrosy montaña al atardecer (1982)

o céu azul desce
e desliza na montanha
árvores florescem

domingo, 22 de novembro de 2015

Em louvor do Inverno

Gabrielle Münter - Breakfast of the Birds (1934)

Os pássaros da manhã vêm até mim, poisam nos ramos despidos pelo frio do Inverno, e cantam as breves canções que trazem na sua alma obscura. E eu? Cantarei com eles? Ah, se a minha alma fosse assim obscura como a deles, cantaria longamente em louvor do frio e da neve, mas tudo em mim é transparente. Chega a manhã e sento-me, olho para além da janela e tomo o pequeno-almoço, como se toda a verdade da minha vida fosse esta ânsia por pão, leite, um rasto de café. Os pássaros olham-me. Não  pedem as migalhas da minha mesa. Olham e cantam. Oiço-os e a minha alma obscurece-se, torna-se leve, cada vez mais leve e secreta. O vento abre a janela, o meu corpo, cheio da leveza obscura da alma, ergue-se e da minha boca soltam-se os primeiros trinados em louvor do Inverno.

sábado, 21 de novembro de 2015

Improvisação e planeamento

Wassily Kandinsky - Improvisação (1909)

O bom senso tende a opor planeamento e improvisação. Naqueles indivíduos ou povos nos quais não floresce a virtude do planeamento, a improvisação surge como uma solução de recurso para disfarçar a ausência do trabalho de deliberação e de organização. A vida do espírito, contudo, mostra que a oposição entre uma coisa e outra é apenas aparente. O carácter espontâneo de toda a verdadeira improvisação só emerge após um longo trabalho planeado e organizado. E toda a improvisação acaba por exigir novos planos. Sim, o espírito é como o vento, sopra onde quer, mas no seu querer não há cisão entre o plano e o improviso, pois são um só.