domingo, 11 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 6

Paul Ackerman - Femme nue devant une table

6. Sob a luz da sombra

Sob a luz da sombra
Desenho o teu corpo
Preso ao meu desejo.

E o que me assombra
Não é luz nem trevas
Mas o que em ti vejo.

sábado, 10 de outubro de 2015

A reconstrução da totalidade

Georgia O'keeffe - Blue and Green Music (1919)

A realidade sensível que nos atinge cinde-se nas portas de entrada da nossa consciência. Sabor, cor, tacto, som e cheiro são já exercícios que resultam de um processo analítico de abstracção imposto pela nossa natureza. Toda a vida espiritual passa pela reconstrução daquilo que foi cindido, num esforço de apreensão do todo que a nossa sensibilidade fragmentou, numa experiência que espera sempre descobrir que o todo é mais do que a mera soma das partes.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

O ritmo de cada um

Nicolás de Lekuona - O bosque do ritmo (1932)

O ritmo é aquilo que diferencia o caminho de cada um na vida do espírito. Por isso, nenhuma aventura espiritual de um homem pode ser modelo a copiar por outro. A consciência desta diferença radical é essencial. O que está em jogo, na vida espiritual, não é a massificação igualitária mas a singularização de cada um. Que cada um, segundo o ritmo que é o seu, responda à voz que o chamou. 

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (251)

Gustav Klimt - Palácio sobre a água (1908)

imóveis as águas
esperam a luz do estio
árvores na margem

terça-feira, 6 de outubro de 2015

No magma umbroso

Fernando Lerín - Sem título (1985)

No magma umbroso da vida estão contidos todos os possíveis. O lento e doloroso trabalho do espírito acabará por retirar uma e outra figura (um deus, um poema, um quadro, um rapto místico, uma sinfonia), num processo secreto, inesperado, que traz consigo a luz que iluminará por instantes o caminho do viandante.

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Do trabalho alienado

George Grosz - Arbeiter (1912-13)

É por demais conhecida a teoria marxista da alienação. O homem, no trabalho moderno ao tornar-se mercadoria, estranha-se da sua própria natureza. O mecanismo económico do estranhamento é, contudo, secundário. A alienação do homem no trabalho reside no facto deste não ser um factor de realização da vida do espírito. Em muito do trabalho que o homem realiza - mesmo em domínios ditos criativos e não apenas no trabalho mecânico - o que existe é uma submissão do espírito a regras que lhe são estranhas. É esta submissão que impede que o trabalho de cada um seja a realização de uma vocação, isto é, uma resposta a uma voz que o chama.

domingo, 4 de outubro de 2015

Fogo de artifício

Darío de Regoyos y Valdés - Fuegos de artificio

O fogo de artifício não é uma mera diversão para alegrar a vida cansada das pessoas. Ele constitui a metáfora por excelência da vida dos homens. Preferem um fogo e uma luz aparentes ao fogo e à luz real e efectiva. O verdadeiro fogo queima e a verdadeira luz cega. Para lidar com eles, um longo e difícil caminho é necessário. É mais fácil fixar-se nas aparências e deixar-se levar pelo artifício do que entregar-se ao esforço que a vida do espírito exige.

sábado, 3 de outubro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 5

Aristide Maillol - Dans l'esprit d'une fresque (1930)

5. Silêncio, silêncio

Silêncio, silêncio.
Oiço um rumor,
Nasce no teu ventre.

Silêncio, silêncio.
Vejo o fulgor
Que a ti me prende.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Arrependimento e conversão

Cecilio Pla Gallardo - Arrepentimiento (1896)

Na vida dos homens, o arrependimento é uma das experiências mais equívocas. Arrepender-se significa que a consciência moral sente remorso por actos ou faltas passadas. Arrependimento, exigem-no os pais aos filhos, os professores aos alunos, o confessor aos crentes, o juiz aos condenados. E o bom senso diz-nos que o arrependimento é melhor que a contumácia no erro. Este jogo entre o arrependimento da consciência moral e a orgulhosa obstinação no erro encerra, contudo, o problema no âmbito da consciência e oculta a questão essencial. O problema não é moral mas da ordem do ser, daquilo que se é. Mais do que arrepender-se, há que tornar-se outro, deixar de ser aquilo que conduz ao erro e tornar-se um outro ser. É esta alteração que faz da conversão uma experiência radicalmente diferente da do arrependimento. E só esta experiência pode evitar o retorno à errância.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Haikai do Viandante (250)

Eugene Delacroix - Estudo do céu ao entardecer (1849)

um céu de outono
entardece nos teus olhos
luz sombra e sonho