quarta-feira, 30 de setembro de 2015

O lugar da noite

Edvard Munch - Evening on Karl Johan (1892)

Para onde vou agora que todos voltam para casa? Quando a noite cai, sinto um pequeno alívio. Os dias, com a sua luz, cansam-me. Por vezes, sinto a cabeça vazia; outras, ela parece estoirar de tão cheia. São assim os meus dias, um eterno balancear entre o vazio e a plenitude. Quando a noite cai, todavia, saio de casa e tomo o caminho contrário ao da multidão que volta. Não olham para mim, seguem indiferentes como se eu fosse apenas uma sombra no crepúsculo. Essa indiferença alimenta-me e eu sigo rua fora. Para onde? Apresso-me para o sítio que semeia o medo daqueles que passam por mim. Corro para o lugar onde nasce a noite. E ela, hirta no seu vestido de veludo, lá está à minha espera. Sinto os seus olhos nos meus. Não os vejo, sinto-os. Tremo no silêncio e nunca sei se a manhã chegará.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

O jogo das labaredas

Boris Kustodiev - Fogueira (1916)

A fogueira não é apenas o centro de uma sociabilidade campestre, o lugar à volta do qual os homens se reúnem e dão livre curso à imaginação narrativa. Ela é também um sinal, um indício, em suma um símbolo. Eleva-se da terra para o céu, como se o destino de toda a matéria fosse rarefazer-se para se elevar ao alto. Aturdido, o homem fixa o olhar no jogo das labaredas e, sem dar por isso, recebe uma lição de metafísica.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O desejo e o nada

Remedios Varo - O desejo (1935)

Associamos rapidamente o desejo ao fogo e dizemos coisas como o fogo do desejo ou o desejo ardente. O que muitas vezes desencadeia o desejo é uma carência, a ausência de qualquer coisa. Pensa-se então que a energia que se manifesta no desejo vem do objecto desejado e não do nada que se revela na carência ou na falta. Isso será, todavia, um equívoco. A energia que alimenta o desejo não é o objecto que o há-de satisfazer, e assim matar, mas a própria carência, o próprio o nada que se manifesta no desejar. O desejo alimenta-se de si e é a si que vai buscar a energia com que fulge na noite e arde no dia. O desejo deseja-se a si.

domingo, 27 de setembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 4

Ramón Casas Carbó - Desnudo (1984)

4. Deitada na erva

Deitada na erva
Um rasto de luz
Ergue-se aos céus.

E os teus cabelos
Esperam a voz
Secreta dos meus.

sábado, 26 de setembro de 2015

O livro fechado

Lisa Milroy - Book (1983)

Há dias em que o coração se descompassa. O som de um violino, um raio de sol entre as folhas das árvores, o grito do meu neto no quintal. A razão, nessa hora, cede, torna-se difusa e uma oração sacode-me os lábios. Uma oração que nasce na razão e que desce, tremeluzente, pelo corpo, para se entranhar em cada célula do meu ser. A terra, em convulsão, logo se aquieta e o coração sossega. Esqueço-me de Deus e pego, ao acaso, num livro, num daqueles que está perdido pelo chão do quarto. Abro-o e começo a ler. Seja qual for o livro, são sempre as mesmas palavras que encontro: esqueces-te de mim mas só eu sei o nome que, no grande livro, se esconde no segredo do teu nome. O livro fecha-se; adormeço.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Haikai do Viandante (249)

Herbert Boeckl - Arbres au bord du lac de Klopein (1923)

neste velho lago
árvores crescem nas margens
raízes na água

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Sobre a discussão

Emil Hansen - Discussion (Blue)

No mundo ocidental, a valorização da discussão - sob a denominação de discussão crítica - oculta duas coisas essenciais. O culta o seu real valor e a sua impotência na vida do espírito. O real valor da discussão é o da substituição da violência física pela confrontação simbólica. Esta substituição, contudo, é uma necessidade social e nada tem a ver com o caminho para a verdade. Os limites da discussão estão na sua própria natureza. A confrontação simbólica através de palavras é ainda uma paixão, onde os egos se afirmam e se defendem. O caminho do espírito começa, todavia, quando o ego se cala e abandona o palco onde representa o seu triste papel.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Poemas para Afrodite (segunda série) 3

Toulouse-Lautrec - Crouching Woman Red Hair (1897)

3. Avisto o teu corpo

Avisto o teu corpo
E tudo estremece.

Os astros no céu.
As águas na terra.

E a minha mão
Que se desvanece.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Do início e do fim

Paul Klee - Ab ovo (1907)

Que maior ilusão poderá haver do que pensar num início? Tanto na vida da natureza como na do espírito não há um início, mas apenas processo de transição que medeiam dois infinitos, o infinito que vem antes e o infinito que vem depois. Mesmo numa interpretação da criação do mundo ex nihilo só em aparência um início. O criador seria o infinito que precede a criação e a criatura. Se não há um início, haverá um fim? Não se estenderá o infinito infinitamente?

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A curva da estrada

Paul Cézanne - A Turn in the Road at La Roche-Guyon (1885)

Uma curva na estrada. Ele parou, olhou em redor, e tornou murmurar: uma curva na estrada. Sentou-se. Estava cansado. A viagem tinha sido longa, mas sem grandes surpresas. Até aqui, o caminho sempre fora recto, agora aquela curva. O que haverá depois dela? Que mundo espera do outro lado? Deixou a memória vaguear por cada uma das etapas que o trouxera ali. Escolhera caminhos fáceis. Neles não havia segredos nem mistérios. Tudo se abria diante do olhar. Agora, tinha uma curva e um mundo que nela se escondia. Anoiteceu e ele continuou sentado à beira da estrada. Olhava à curva, fascinado. O cansaço era tanto que o sono venceu o fascínio. Quando acordou, olhou para a curva que tolhera a sua viagem. Desaparecera. À sua frente erguia-se uma enorme escarpa. Uma fronteira intransponível.