segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Chegar à fonte

Giovanni Segantini - Mulher na fonte (1895-96)

No intrincado jogo de metáforas e símbolos que a experiência da humanidade foi produzindo, a fonte tem um lugar de relevo. O lugar de onde brota a água presta-se à construção de uma simbólica que nos remete para a fonte da vida, para a fonte do espírito. Chegar, porém, à fonte não é chegar à origem. A fonte é o lugar onde algo se manifesta, emerge no ser e se deixa ver na sua presença. Chegar à fonte não é o fim da viagem. É um recomeço. A fonte é apenas a porta de entrada.

domingo, 30 de agosto de 2015

A aridez da pedra

JCM - Mitologias (o triunfo da vida). Serra de Aire (2007)

Subitamente, na aridez desolada da pedra a vida emerge triunfante. O que aprendemos nós com isso? Talvez a pedra não seja tão árida. Talvez a aridez não se tão petrificante. Aprendemos que a vida do espírito não é outra coisa senão extrair da aridez e da petrificação da existência a vida plena e, cuidando-a, fazê-la triunfar sobre a desolação da morte.

sábado, 29 de agosto de 2015

Da frugalidade e da abundância

Ferdinand Hart Noibbrig - Abundância (1895)

A vida material domina as preocupações dos homens, e domina-as na busca da abundância, de uma infinita viagem de acumulação, que nunca se completa e nunca se sente satisfeita. A vida do espírito, contudo, nasce da frugalidade, do abandono, da satisfação com o acontecer. A vida espiritual não alimenta mercados nem ateia a imaginação dos coleccionadores. Ela é pobre. Foi assim que foi simbolizada no presépio em Belém.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Haikai do Viandante (245)

Asher Brown Durand - A Pastoral Scene (1858)

cenas pastoris
sob um céu primordial
canções juvenis

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Alegoria e realidade

André Masson - Alegoria (1935)

Na definição tradicional de alegoria, pensada como processo retórico ou poético, diz-se que ela é a representação de uma realidade abstracta por intermédio de uma realidade concreta. Se abandonarmos os campos da retórica e da poética e entrarmos no campo da ontologia haverá a possibilidade de pensar, a partir da alegoria, que toda a realidade concreta, incluindo os seres humanos, não é mais do que uma alegoria de uma outra realidade menos concreta, a qual por sua vez seria ainda a alegoria de uma outra ainda menos concreta do que a anterior, num processo infinito, no qual o real se vai despindo da sua materialidade e se vai tornando cada vez mais puro e espiritual. 

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Do burlesco

Thomas Hart Benton - Burlesco (1922)

Deixemos o burlesco enquanto género literário de lado. Não precisamos dele para nos rirmos e apreendermos o risível, o ridículo e o caricato. Basta olhar para nós próprios, para os nossos projectos vitais, e, nobres ou comuns, dignos de tragédia ou objecto de comédia, temos todas as razões para nos rirmos, para nos rirmos continuamente, numa gargalhada sem fim.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Um luar nas trevas

Felix Vallotton - Luar (1895)

Muitas vezes a razão é vista através da metáfora da luz solar, pensando-se, através de uma analogia, que assim como a luz do Sol ilumina a Terra, também a razão ilumina a realidade e permite ao homem compreendê-la. Se a nossa espécie não fosse tão narcísica, tomaria como termo de comparação para a sua razão a luz da Lua e não a do Sol. Isso estaria mais de acordo com os resultados e as decepções que a razão, ao longo da história dos homens, trouxe consigo. A luz da razão pode ser bela, mas não passa de um luar que, com dificuldade, fende as trevas exteriores.

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Ficar e partir

Umberto Boccioni - Estados de Alma I - os que partem (1911)

Na vida social dos homens há uma grande diferença entre os que ficam e os que partem. Ficar ou partir são formas diferentes de projectar a vida e podem mesmo constituir um traço de carácter. Na vida do espírito, contudo, é indiferente ficar ou partir, pois há que aprender a ficar como se tivesse partido, e aprender a partir como se tivesse ficado.

domingo, 23 de agosto de 2015

Caminhos áridos

Remedios Varo - Caminho árido (1962)

Na vida do espírito, seja qual for a área onde se desenvolva a vida espiritual (religião, arte, ciência, filosofia), os caminhos áridos, marcados pela impotência criativa, são centrais na viagem. A aridez devolve o espírito à sua humildade, mostra-lhe a sua finitude, mostra-o dentro dos limites que são os seus. Estes exercícios forçados de humildade são, porém, momentos preciosos. Preparam uma nova etapa de criação e de atenção ao que é essencial, de capacidade para escutar a voz que chama.

sábado, 22 de agosto de 2015

Poemas do Viandante (519)

Roberto Domingo - O Moinho

519. ó branco e velho moinho

ó branco e velho moinho
rasga-me a memória

ergue-te sobre os campos
suspende o tempo

e conta-me p'lo caminho
a velha história

envolta em negros mantos
presa num lamento