sexta-feira, 10 de julho de 2015

O ritual da procissão

Ignacio Pinazo - Procesión del Corpus en Godella (1888)

A procissão, refiro-me àquela que tem um carácter religioso, é um momento ritual de culto religioso, marcado pela solenidade do acontecimento. Se nos ativermos, porém, a uma perspectiva tradicionalista da vida, talvez possamos descobrir uma outra coisa, a qual acabou por se tornar desconhecida para um homem de educação moderna. O caminhar solene da procissão não é apenas uma mera cerimónia religiosa, mas a simbolização da vida. A vida na sua inteireza, desde o nascimento até à morte é compreendida pelo homem de mentalidade tradicional e religiosa como um caminho, o qual, em todas as suas etapas, deve ser percorrido com a solenidade que os crentes ostentam no ritual da procissão. Nela, na procissão, é a vida que se representa, se extrai da banalidade do quotidiano e ganha um sentido que ultrapassa o mero facto de se estar vivo.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Haikai do Viandante (240)

Anónimo Pré-histórico - Arqueiro em corrida (Abrigo del Garroso. Alacón)

o arqueiro corre
preso na pedra da gruta
voz que me escuta

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Combate enigmático

Arshile Gorky - Combate enigmático (1937)

A vida, segundo a longa experiência do senso comum, é uma luta sem fim. As tradições religiosas vêem-na, muitas vezes, como milícia. O mundo dos homens não deixa de ser um palco permanente de conflitos. Luta, milícia, conflito, toda essa experiência fala-nos do combate, mas de um combate enigmático. Mesmo quando lutamos contra a natureza, mesmo quando conflituamos com o próximo, é ainda esse combate decisivo e misterioso que travamos, o combate contra nós mesmos. É ele que se manifesta em todos os outros, que os anima e os faz brilhar. É esse combate que queremos ocultar de nós, alienando-nos nas guerras do mundo. É esse combate, porém, que contém o enigma que somos.

terça-feira, 7 de julho de 2015

A velha lápide

Albert Bloch - Antigo cemitério (1940-41)

Ela atravessava a aldeia e dirigia-se para o velho cemitério. Percorria-o como se o fizesse ao acaso, parando aqui e ali, lendo uma inscrição, compondo um ramo de flores, recolhendo-se perante a campa de um familiar. Depois sentava-se diante de uma lápide muito antiga, sem qualquer inscrição. Ninguém sabia a quem pertencia ou, sequer, quando fora ali posta. Já os avós dos avós dos mais velhos a conheciam naquele lugar, mas nem eles souberam a quem pertencia. Fascinada, pelo mistério, voltava lá todas as manhãs. Ainda não chegara aos setenta anos quando morreu. No dia do enterro, manhã cedo, os coveiros abriram a sepultura longe da lápide que fora o motivo da sua vida. Depois da missa, o cortejo percorreu a aldeia e entrou no cemitério. De súbito, uma estranha luz iluminou a velha lápide e o neto mais novo, uma criança de colo, balbuciou: é a casa da avó. Atónitos, olharam para lá. Diante da velha lápide uma cova funda esperava por ela.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

No lugar da insignificância

Pére Pruna - Belén (1931)

Voltemos ao episódio do nascimento de Cristo, em Belém. A história que nos é contada dá-lhe a aparência de um acidente, motivado pelo fortuito das circunstâncias políticas vividas na altura. Esta leitura, porém, é ingénua. Não podemos olhar para as narrativas evangélicas como crónicas de acontecimentos factuais, uma espécie de pré-história da história. Elas são antes a construção de um conjunto de pistas que devem orientar os homens no caminho para si mesmo, para a verdade. A conexão entre a pobreza do presépio de Belém e o nascimento do Cristo nesse lugar é a indicação de que o Absoluto se revela naquilo que há de mais pobre e, aparentemente, destituído de significação. O viandante, ao meditar, a narrativa sobre os acontecimentos de Belém é ensinado a olhar para aquilo que é sem valor, destituído de poder, marcado pela ausência do brilho que envolve a vaidade dos homens. No lugar da insignificância manifesta-se o que há de mais significante e significativo.

domingo, 5 de julho de 2015

Haikai do Viandante (239)

Edward Hopper - Adobe Houses (1925)

casas de adobe
erguem-se lentas do chão:
segredo na terra

sábado, 4 de julho de 2015

Signo sinal 7. No ermo dos montes

Joan Miró - Ermida de Sant Joan d'Horta (1917)

Há lugares que funcionam como um sinal, um indicador. Uma ermida perdida no ermo dos montes não é apenas o sinal de uma antiga devoção. É um lugar onde o viandante recobra as forças para a viagem, é o sinal de que não entrou na errância, o signo que confirma que ele segue no caminho para o qual não há confirmação.

sexta-feira, 3 de julho de 2015

Poemas do Viandante (513)

Luciano Freire - Trecho da Trafaria

513. o casario em ruínas

o casario em ruínas
desce pelo monte

a cor da melancolia
morre nas paredes

no velho vidro quebrado
pela luz do horizonte

no frio aceno da mão
com que te despedes

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Matéria de dogma

Pablo Picasso - Humo en Vallauris (1951)

O fumo que cresce e tapa o horizonte. É esta a condição humana. A limpidez original vai, durante a vida, sendo toldada pelo fumo trazido pelos dias, até que o horizonte fique completamente tapado. Num primeiro momento, o homem ainda possui uma reminiscência desse horizonte. Esta, porém, vai sendo paulatinamente apagada da memória até que nada reste. Nessa hora, crer que para lá do fumo existe um horizonte puro passa a ser matéria de dogma. O fuma tornou-se a única realidade digna de crença.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Um pressentimento

Paul Klee - "Quelle peut être la raison ..." (1911)

Há um tempo em que os seres humanos desconhecem a razão das coisas e daquilo que sucede e lhes sucede. Depois descobrem um dos seus passatempos preferidos: encontrar a razão das coisas. Dar a razão de... é um jogo poderoso e fascinante. Tão fascinante e poderoso que os homens perdem a abertura para o que não tem razão, para aquilo que não se deixa capturar pela veemência do logos. Por vezes, têm um pressentimento e, então, tremem: e se o decisivo estiver para além da veemência da razão?