segunda-feira, 29 de junho de 2015

O construtor de pontes

Alejandro Xul Solar - Anjos (1915)

De súbito, acordou e viu a sua vida diante de si. Não era daquelas visões que, diz-se, o moribundo tem antes do desenlace fatal. Era uma visão prosaica do seu trabalho. Arquitecto, passara a vida a construir pontes. Viu, naquele instante, cada rio que venceu, cada margem que ligou, cada ponte que ajudou a erguer para que a vida dos homens fluísse e as águas fossem vencidas. Sentiu um vazio. A sua vida não fora mais do que ligar o semelhante ao semelhante, um lado ao outro. Melancólico, tornou a adormecer e sobre ele veio novo sonho. Não sabia desenhar e nas suas costas cresceram umas enormes asas. A angústia aumentou, aumentou, até que viu, num lado da terra, a multidão dos homens e no céu uma presença viva sem forma, sem figura, sem matéria. E enquanto, atónito, olhava para um lado e para o outro, sentiu a verdade do seu ser. Não, ele não era um pobre construtor de pontes. Ele era a própria ponte que ligava uma e outra margem, o finito e o infinito, o relativo e o absoluto. Era um anjo perdido entre a terra e os céus.

domingo, 28 de junho de 2015

Haikai do Viandante (238)

Rodríguez Castelao - A casa do cruceiro (1922-29)

um velho cruzeiro
no frio do mármore cabe
um homem inteiro

sábado, 27 de junho de 2015

Expressão do Ser

Willian M. Harnett - Music and Literature (1878)

O romantismo viu a arte como uma expressão comunicativa da subjectividade do artista, das suas emoções e dos seus sentimentos. Nesta concepção há uma visão quase biográfica da obra de arte. Mas não será isto um equívoco? Que interesse pode ter a subjectividade de alguém, por mais complexa que possa ser? O que é importante não são os sentimentos ou as emoções singulares, mas aquilo que, através delas, se manifesta. Se um artista o é efectivamente aquilo que fala nele não é ele mesmo mas algo que o ultrapassa infinitamente. O eu que fala no poeta lírico não é o da subjectividade do poeta mas daquilo a que uma longa tradição deu o nome de Ser.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Entardecer

Paul Signac - Le Canal Saint-Martin, Paris (1933)

O dia declinava. Sentou-se à janela, o gato saltou-lhe para o colo, ronronou. Distraidamente, como se fosse um hábito antigo, começou a acariciá-lo. Fazia-o com lentidão bem medida, a necessária para que o bicho ali ficasse. Enquanto a mão ia e vinha pelo dorso do animal, os seus olhos perscrutavam o velho canal. Ficava horas a ver os barcos passar e, em cada um, era ela que passava. Nascera naquela casa e habituara-se a ver a água correr. A sua vida desenrolou-se ali. Nela perdera os pais, nela ficara quando casou, nela permaneceu quando o marido morreu e os filhos se fizeram ao mundo. Agora, que só lhe restava o gato, ela olhava da janela e deixava-se embalar no ritmo da tarde. Por vezes avistava uma sombra e logo descobria que era ela a sombra que entardecia no ronronar do gato, no deslizar do barco sobre águas.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Conversão do olhar

Ricardo Baroja Nessi - Cansaço (1951)

O cansaço não é apenas uma reacção ao excesso de esforço físico ou mental. Quando assim, é um sintoma da necessidade de descanso, para que a mesma actividade possa ser retomada. Há todavia um cansaço mais essencial, aquele que nenhum descanso tem o poder de fazer desaparecer. Esse cansaço é o sinal de que a forma como concebemos o mundo e nos concebemos dentro do mundo está em contradição com aquilo que há de mais fundamental em nós. Esse cansaço é a voz que chama não ao descanso mas à conversão do ponto de vista, à conversão do olhar.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

A velha alameda

Vincent Van Gogh - Alameda cerca de Nuenen (1885)

Era uma alameda sombria, daquelas alamedas que só existem no passado, num tempo já morto e por isso mesmo perfeito. As árvores teciam uma fina rede que coava os raios de sol, deixando chegar apenas uma luz irisada e suave. Era, na verdade, o seu mundo. Todas as manhãs, pouco depois da aurora despontar, levantava-se, percorria a alameda várias vezes, sempre com o mesmo passo, sempre concentrado no andar, sempre absorto no que via. Se alguém o cumprimentava, mal respondia, fascinado pelo caminho que percorria. Passaram os meses e os anos. O que para ele se tornou um hábito, para os outros tomou o nome de tradição. As razões daquele ir e vir matutino ninguém as conhecia. Se alguém lhe perguntava, respondia: o que sabemos nós do mundo? Enlouquecera, pensavam. Ele ria para dentro e dizia para si mesmo: como podem compreender que cada vez que percorro a velha alameda ela é diferente e sempre nova? Nem uma só vez repeti a viagem. Depois, abanava a cabeça, como se todos os fossem cegos, olhava as árvores e punha-se a caminho.

terça-feira, 23 de junho de 2015

Dúvida e crença

Francisco Arjona - ¡Adelante con la duda! (1985)

A dúvida é um elemento estrutural de qualquer crença, tenha esta uma natureza epistemológica, moral, estética ou religiosa. Duvidar não é uma acção contra-natura do homem, pelo contrário. Duvidar é reconhecer os limites e a finitude dos seres humanos. A crença ou a fé de um homem que não duvida é destituída de qualquer valor, pois assenta numa denegação da sua condição, numa revolta contra a natureza limitada dos seus poderes, numa pretensão a um saber absoluto, seja qual for a área em que se manifeste esta crença. Em linguagem religiosa, esse tipo de fé não é outra coisa senão o pecado do orgulho.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Poemas do Viandante (512)

Francesco Clemente - Memória (1996)

512. dias de grande dispersão

dias de grande dispersão
vêm com o estio

desenham sombras na casa
rasgam as janelas

e lembram os dias passados
no mar da infância

o grande e bravio oceano
preso na memória

domingo, 21 de junho de 2015

Condição lunar

Georges Rouault - ... ao chegar a noite, saiu a lua (1930)

O homem é a lua sobre a terra. Como ela, ele pode reflectir uma luz cuja intensidade o ultrapassa e cuja origem está fora e muito acima dele. Esta sua condição lunar acentua-se quando a luz que o ilumina é interceptada e ele fica na escuridão. Também nessa hora ele é como a lua, é lua nova e às trevas ele tem o condão de acrescentar outras trevas.

sábado, 20 de junho de 2015

Haikai do Viandante (237)

Henri Edmond Delacroix Cross - Arbres au bord de la mer (1906-07)

presas ao estio
as árvores adormecem
entre céu e mar