quarta-feira, 10 de junho de 2015

O ponto originário

Frantisek Kupka - À volta de um ponto (1911-12)

A trama da vida dos homens é tecida à volta de um ponto. É o ponto originário, secreto, oculto na profundidade do ser. Nesse ponto, falou a voz que nos convocou à vida. E é nesse ponto original e singular que continua a bradar essa mesma voz. Muitas vezes, é como se estivesse no deserto. Outras, porém, ela acorda o viandante que há em cada ser humano e põe-no a caminho.

terça-feira, 9 de junho de 2015

A sacralidade do pão

Nicolas de Staël - O Pão (1955)

A natureza sagrada do pão não deriva da Última Ceia e da instituição da Eucaristia por Cristo. Diria antes que essa instituição foi feita porque o pão era já um símbolo sagrado. Nele se conjugava a vitória da humanidade sobre a dura necessidade natural e a descoberta de uma liberdade que eleva o homem acima da natureza. O pão era, na verdade, sentido como um verdadeiro milagre, uma dádiva, um dom, o qual não poderia ser a criação de um mero animal mesmo racional. A racionalidade era sentida como a capacidade de acolher o dom e não de o criar por si mesmo.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Algum lugar

Juan José Aquerreta - Algún lugar (1991)

Quando dizemos "algum lugar" não estamos conscientes do papel que, ao nível existencial, a indefinição introduz. O viandante parte sempre deste lugar, de um lugar de fronteiras claras e definidas, de um território geograficamente constituído. A viagem é, ao contrário, um processo de continua indefinição dos lugares, de desterritorialização. A indefinição, todavia, não é o fim último que orienta o viandante. Ela é apenas uma mediação, na qual a fixidez da existência perde os seus contornos e começa a abrir-se. Abrir-se para quê? Para o lado nenhum, para o nenhures, para a ausência de território, de fronteiras e de determinações. A viagem leva o homem do determinado para a mais pura indeterminação.

domingo, 7 de junho de 2015

Os objectos do quotidiano

Giorgio Morandi - Natureza-morta (1937)

Nos objectos do quotidiano não se reflecte apenas a necessidade que conduz o homem à sua produção. Também aí se espelham as figuras do espírito. Estas figuras não são meros conceitos estruturados pelo talento do designer. São presenças reais de um mundo não material que, ao tomar forma, ganha corpo e torna-se símbolo da dupla natureza humana: corpo e espírito. Também nos objectos do quotidiano habitam os deuses.

sábado, 6 de junho de 2015

Haikai do Viandante (235)

JCM - Ruínas (2008)

ruínas são runas
traço escrito pelo tempo
são a voz do vento

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Poemas do Viandante (510)

Antón Goyanes - Sombra (1990)

510. volto ao vento da infância

volto ao vento da infância
à primeira casa

a velha porta aberta
espera-me ali

entro e sento-me em silêncio
no frio do passado

e uma sombra devastada
cresce para mim

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Uma visão panorâmica

Salvador Dali - Arquitectura surrealista (1932)

Se olharmos de longe o percurso da viagem que fazemos - da vida que vivemos - rapidamente descobrimos, nas linhas que a compõem, uma estranha arquitectura, a resolução existencial de um projecto de que, ao mesmo tempo, somos os autores e os operários. Projecto esse, contudo, que só descobrimos depois de realizado, do qual só tomamos consciência quando nos afastamos dele para obter uma visão panorâmica.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

A luz do crepúsculo

Georges Rouault - Barcos de pescadores ao sol poente (1939)

Não, ele não era pescador. Sempre que podia, porém, embarcava com os homens do mar para ver chegar a noite. Enquanto os homens se entregavam à faina, ele contemplava o sol. Sentia uma vertigem quando o astro começava desaparecer na linha do horizonte. A noite aproximava-se, mas uma estranha luz, a luz do crepúsculo, permanecia viva. Ele olhava para ela e sentia-a, naquela hora, como uma promessa. Também ele era um homem crepuscular. Acreditava secretamente, contudo, na promessa. A noite viria, mas a luz triunfaria e ele descobria a verdade que se ocultava no crepúsculo que o habitava, no crepúsculo que ele própria sentia ser.

terça-feira, 2 de junho de 2015

O centro e a periferia

Egon Schiele - Subúrbio I (1914)

O centro atrai os homens pois é ali que reside a possibilidade de reconhecimento e, por isso mesmo, a possibilidade de fama e de glória. O centro é o dispositivo - a grande máquina - que sustenta a vaidade dos homens, que produz o seu fascínio consigo mesmos, que alimenta a grande fábrica do narcisismo. O viandante deve aprender o caminho da periferia, deve amar o subúrbio, deve caminhar para desolação. Não apenas porque abandonou qualquer ilusão sobre si mesmo, mas porque descobriu que é no irrelevante, no desprezado, no subúrbio que fala a voz que o chama, que é aí, onde o reconhecimento foi suspenso, que ele é reconhecido naquilo que é. É aí o verdadeiro centro do mundo.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

O mistério da encarnação

Umberto Boccioni - Dynamism of a Cyclist (1913)

O mundo contemporâneo preocupou-se, essencialmente, com o dinamismo dos corpos. Melhor: interessou-se, em primeiro lugar, com a dinâmica dos mecanismos, pois o corpo, no século XVII, foi reduzido a uma máquina e, desde então para cá, nunca o deixou de ser, uma máquina cada vez mais eficiente e atraente, mas não mais do que uma máquina. Para penetrarmos no mistério - no sagrado mistério, diria - do corpo é preciso, em primeiro lugar, suspender o fascínio pelo seu dinamismo mecânico. Depois há que ousar e perceber que o corpo não é outra coisa se não espírito que ganha carne, espírito encarnado. E aqui reside o mistério, o mistério da encarnação.