domingo, 31 de maio de 2015

A dissolução da fronteira

Isidre Nonell Monturiol - Repouso (1902)

Sentou-se e encerrou-se dentro de si. Exauridas as forças, não é a energia que pretende recuperar. Isso seria desviar-se do caminho, esquecer-se do que a levou ali. Quer perder-se, abandonar-se, liquidar toda a resistência que, em si, a opõe à luz do espírito, ao chamamento da voz que, ao pronunciar o seu nome, a convocou para a vida. Repousa do mundo para que a fronteira se dissolva e tudo ganhe sentido.

sábado, 30 de maio de 2015

O grande rio do silêncio

JCM - Mitologias (os afluentes do silêncio) (2014)

O grande rio do silêncio, assim começo a minha crónica. Olho-o, sentado na varanda, e vejo frases, palavras, sílabas, as pequenas letras a caminharem para ele. Nascem impetuosas, mas logo se moderam e fazem do ritmo um exercício de abstinência, para desaguarem puras e belas no rio que as conduzirá ao oceano. Aí, livres do peso vocálico, abrem-se para que os deuses as tomem de volta, as enriqueçam de segredos e enigmas, e as devolvam plenas aos homens, para bênção ou desdita destes.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

Haikai do Viandante (234)

JCM - Mitologias (2014)

sob o nevoeiro
esconde-se a luz do sol
eis o dia primeiro

quinta-feira, 28 de maio de 2015

O seu caminho

JCM - Mitologias (2014)

Foi o desejo de solidão que o levou ao mar. A solidão, porém, era apenas um sintoma, talvez um sinal daquilo que chamava por ele. Sentado no pequeno veleiro, olhava o oceano e deixava que o silêncio que habita o bramir das águas chegasse até ele. Tarde ou cedo, meditava, ouviria a voz que o chamou e saberia o que ela queria dele. E assim, durante todos os dias que viveu, levantou-se, embarcou e navegou de manhã à noite, sempre com a esperança de ouvir aquilo que que dele a voz queria ao trazê-lo à vida. No momento da morte percebeu, porém, que a voz falara sempre dentro dele e que o seu caminho era apenas ir e vir nas águas infinitas do oceano.

quarta-feira, 27 de maio de 2015

Poemas do Viandante (509)

Georgia O'keeffe - Black Cross, New Mexico (1929)

509. No centro da escuridão

No centro da escuridão
desenho a luz.

E com ela ilumino
as minhas palavras.

Sílabas incendiadas
no meio da tormenta.

Letras de água e fogo,
uma flor na cruz.

terça-feira, 26 de maio de 2015

Estar na margem

Henri Rousseau - Nas margens do Oise (1908)

Estar na margem não é ser marginal. Estar na margem não é ser excluído. A margem não é um destino terrível para todos os seres humanos, só para aqueles que sonham estar no centro do palco. Viandante é aquele que descobriu que não há diferença entre a margem e o centro. Para ele, todos os centros são periferias e todas as margens, o centro do ser.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

A leve alteração

Joan Hernández Pijoan - Cinco espaços dourados (1976)

As lentas e imperceptíveis metamorfoses do espaço exigem um espírito aberto para a diferença. O que significa isto? Significa que a vida espiritual não é uma abstracção mas um exercício contínuo de abertura e atenção ao diferente. Não apenas à diferença ostensiva que nos fere o olhar, mas também à leve gradação que simboliza a liberdade do espírito. O divino não se manifesta só na radical alteridade. Também na leve alteração habitam os deuses.

domingo, 24 de maio de 2015

Um naufrágio

Henri Edmond Delacroix Cross - O naufrágio (1907)

Um súbito pensamento levou-o para o mar, embarcou incauto para o grande naufrágio, para o lugar onde a morte e a ressurreição marcaram encontro, o decisivo encontro da sua vida. Não sabia o que acontecera, mas mergulhara uma e outra vez nas águas tempestuosas do oceano. A primeira, trémulo de medo, sentiu-se envolvido num turbilhão que parecia não acabar. A segunda, como se submergisse na tranquilidade benévola do regaço infinito de Deus. Olhou-O, na face. Morreria? Ao emergir, descobriu-se ressurrecto. Sabia agora o grande segredo da vida e entregava-se, sem resistência, à dança da morte. De súbito, uma mão aproximou-se e puxou-o das águas. Ouviu vozes e tudo em si se desvaneceu. Foi o que ele me disse. 

sábado, 23 de maio de 2015

Haikai do Viandante (233)

JCM - Colour Dreams (2014)

irrompe a lua
no frio céu azul da tarde
o deus que te aguarda

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Uma pequena luz

JCM - Black & White Dreams, Valladolid (2006)

A luz afunda-se no oceano e deixa a noite crescer dentro da cidade. Então ele anoitece pelas praças e vielas, espera, como uma promessa, o regresso daquilo que o ilumina, o chama para a vida, o visita mesmo se dorme. Quando a noite é mais negra, ainda uma pequena luz bruxuleante fulgura no fundo do seu coração. Abre os olhos, e ela ali está. Despida. Então ele soletra-lhe o nome e estende-lhe a mão, sente a pele deslizar-lhe sob os dedos. Deseja-a. Ela sorri. Todo o seu corpo freme e o olhar cintila. É a luz que o ilumina, a voz que o ergue da morte e o ressuscita para a eternidade de cada dia. Desperto, descobre-se só, mas a luz arde ainda num lugar secreto, no fundo silencioso da caverna da sua consciência.