domingo, 10 de maio de 2015

Poemas do Viandante (507)

Corneille - Juegos de pájaros en un cielo de verano (1998)

507. pressente-se o voo

pressente-se o voo
das aves estivais

trazem consigo um resto
de calor amainado

pelas nuvens que vogam
esquecidas nos céus

pela penumbra aberta
que desce dos teus olhos

sábado, 9 de maio de 2015

Um grão de areia

Robert Delaunay - Saint-Séverin nº 3 (1909-10)

A desmesura que certas igrejas apresentam é diferente daquela que o Antigo Testamento simbolizou na Torre de Babel. Nesta estava plasmada a desmedida humana, a ambição prometaica de conquistar o território dos deuses. Na igreja cristã aquilo que é simbolizado é a pequenez do homem perante o mistério divino. Ao entrar nesse espaço, o orgulho do animal racional é devolvido à sua dimensão: um grão de areia perdido no universo.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

A improvisação e o imprevisto

Wassily Kandinsky - Improvisação (1909)

Se o espírito é como o vento, sopra onde quer, a resposta do viandante só pode ser a improvisação. O improviso é aquilo que é solicitado pelo imprevisto. Improvisar, porém, não é entregar-se ao caos e ao acaso. É abrir-se à solicitação do espírito, a qual, para nós mortais, é sempre imprevista e sempre imprevisível.

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Haikai do Viandante (231)

Pierre Bonnard - Lumière de soir, près de Vernon (1922)

a luz que te guarda
desce leve sobre a terra
assim cai a tarde

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Colher o que semeou

Kazimir Malevich - In the field (1911-12)

Também o viandante é um lavrador. A viagem é a sua forma de trabalhar a terra, de a semear e de cuidar das plantas. Tudo é feito em conformidade com as estações e os rigores do tempo. Nos dias de intempérie recolhe-se em casa e medita, para, logo que o tempo amaine, se fazer à estrada e colher aquilo que semeou.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Permanecer no Absoluto

Jiri Georg Dokoupil - Cristo (1986)

Se alguém permanece em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto, porque sem Mim nada podeis fazer. (João 15:5)

O enigma da vida espiritual reside todo ele na afirmação paradoxal de uma impotência. O homem, desligado do Absoluto, nada pode. O paradoxo é que o homem, na sua relatividade e na sua hostilidade ao absoluto, pode e com esse poder rasga o mundo. Ora o poder que João refere não é esse que nasce da iniciativa humana é um outro poder. Dele sabemos apenas que resulta da ligação ao Absoluto e que é frutuoso. O resto é enigmático. Este enigma não é resolúvel pela razão mas pela acção, a qual está consignada no verbo permanecer. Como pode o relativo permanecer no Absoluto?

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Casas de adobe

Edward Hopper - Adobe Houses (1925)

Casas de adobe. Os homens sonham com palácios e julgam que neles se funda o mundo. Não sabem, porém, que mesmo uma casa de adobe pode ser já um excesso. O viandante deve, se vive num palácio, aprender a viver aí como se vivesse numa casa de adobe. E se vive numa casa de adobe deve aprender a viver como se fosse um sem abrigo, pois na viagem que lhe cabe nada o pode abrigar das intempéries que sobre ele desabam.

domingo, 3 de maio de 2015

O anseio pelo invisível

Wassily Kandinsky - Amarelo - Vermelho - Azul (1935)

Aristóteles, logo no início da Metafísica, sublinhava a preferência dos homens pela visão, não apenas para efeitos práticos mas também porque ela permite-nos conhecer mais objectos e revela-nos mais diferenças que outros órgãos dos sentidos. O fascínio da visão, porém, pode ocultar ao homem os objectos e as diferenças que a visão não capta. Uma parte da pintura da contemporânea pode ser explicada como uma luta paradoxal contra o visível para tornar visível o que o não o é. Este anseio pelo invisível é a essência da viagem espiritual.

sábado, 2 de maio de 2015

Poemas do Viandante (506)

Emil Hansen - Light Sea-Mood (1901)

506. um poema de água e luz

um poema de água e luz
aberto no mar

desenha ligeiras ondas
na paz destes dias

onde palavras cifradas
trazem o silêncio

com que escondes o teu corpo
do vento e do frio

sexta-feira, 1 de maio de 2015

Aprender a anoitecer

Max Klinger - Noite

A noite carrega consigo múltiplas e antagónicas simbolizações. É inútil esboçá-las sequer. Inerente, porém, ao fascínio da noite é também a expectativa da vinda do dia e da luz. João da Cruz tematiza a noite escura como esse sentimento de abandono que o crente sente na viagem espiritual. Mas como pode o homem perdido no mundo, guiado pela luz natural dos sentidos e da razão, entrar sequer nessa escura noite de que fala o místico castelhano? Talvez a resposta esteja ainda na noite. Terá de aprender a anoitecer, aprender a ver a luz dos sentidos e a da razão como pura obscuridade e obstáculo no caminho.