quinta-feira, 30 de abril de 2015

Sem porta nem janelas

Juan Rulfo - Barda tirada en un campo verde

Muros, linhas divisórias, estremas, fronteiras, um exercício continuado de territorialidade, um jogo de exclusão e inclusão, uma campanha sem fim contra o medo. Mas não é na máxima segurança que está a autêntica insegurança? Não é ali, onde tudo está fechado, que o vento não corre? Enquanto o espírito viver murado e preso a fronteiras não escutará a voz que por ele chama. Surdo e errante julgará que a vida só será possível na oclusão e no fechamento de si.  Pobre mónade, sem porta nem janelas.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

A condição humana

Susan Rothenberg - Beggar (1982)

Os homens, no jogo de comparações e invejas que entre si tecem, estão convencidos de que a riqueza, esse excesso de possibilidade de consumir, é o que há de mais desejável na existência. Vivem atormentados pelo espectro da indigência, de se tornarem, literalmente, mendigos. O que eles desconhecem é que a mendicância é a sua verdadeira e única condição. Não porque lhes faltem bens materiais, mas porque a carência é constitutiva do seu ser. A única condição verdadeiramente humana é a de ser mendigo. Uns iludem-se enchendo-se de bens, outros assumem a sua condição e aprendem a rogar o que lhes falta.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Os dias frios

Lucien Lévy-Dhurmer - Bruxelas, sob o efeito da neve (1900)

São os dias frios os mais propícios para o espírito se recolher dentro de si. A exuberância do calor é substituída pela austeridade que o frio traz e nos leva a centrar no mundo interior. Libertos da distracções que o tempo quente sempre exige, entregamo-nos à mais pura das asceses, aquela que nos leva ao silêncio e deixa falar em nós a voz que nos chama.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Haikai do Viandante (230)

Francis Picabia - Amanecer en la bruma, Montiguy (1905)

árvores azuis
esperam entre as brumas
o sol dos pauis

domingo, 26 de abril de 2015

Do servo e do amigo

Egon Schiele - The Friends (Round Table), Small (1918)

Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor. Mas chamei-vos amigos, pois vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai. (João 15:15)

Educados por uma cultura assente há muito na dialéctica do senhor e do escravo proveniente da lição de Hegel, tornámo-nos incapazes de perceber uma outra forma de dissolução dessa relação. No versículo de João tanto a relação entre senhor e servo como a relação que transforma os homens em amigos está mediada pelo conhecimento, mas um conhecimento dado pela revelação. O servo é servo porque não sabe o que faz o seu senhor. A lei - neste caso a lei mosaica - é uma lei que, pela sua exterioridade e imposição pelo Senhor, faz dos homens servos. Mas a revelação que Cristo traz consigo faz daqueles que a ouviram amigos e não servos. E como já sabia Aristóteles só é possível amizade entre aqueles que são iguais.

sábado, 25 de abril de 2015

Inscrito no olhar

Georges Braque - O porto de Le Havre (1903)

O velho enigma de um barco a chegar ao porto. Sentado, o viandante vê-o chegar e sente nele o mundo que deixou para trás e que, ao ser abandonado, escondeu-se nos olhos da tripulação e, secreto e sonâmbulo, prepara-se para aportar numa nova pátria. É assim que o viandante, ao cruzar-se com outros viandantes, vê o mundo de onde vêm. Está-lhes inscrito no olhar, nesse olhar que é abismo e fundo do infinito do ser.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Estátua de sal

Raoul Dufy - Paisagem  de Munique (1909)

E a mulher de Lot olhou para trás e ficou convertida numa estátua de sal. (Génesis 19:26)

O passado tem um terrível poder de sedução. Quadros ou fotografias de um tempo que passou, com o mistério que todo o passado contém pelo simples facto de ter passado, retêm o espírito e dão-lhe a ilusão que a verdade que busca ou a casa que procura residem nesse tempo inacessível e belo na sua inacessibilidade. Esta nostalgia do passado não é, para a vida do espírito apenas uma ilusão. É um perigo. Como a mulher de Lot, também o espírito que olha para trás corre o risco de se solidificar e converter numa inútil estátua de sal.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Poemas do Viandante (505)

Francis Bacon - Man Turning on the Light (1973-74)

505. este vazio que se abre

este vazio que se abre
no centro do mundo

a luz que se desvanece
nas margens da terra

escondem o mar inóspito
onde me afundo

a amarga e sombria mão
que ali me encerra

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Levado pelo vento

Darío de Regoyos y Valdés - Una calle de Córdoba

Uma rua que de súbito se fecha e se torna em mistério. São assim os caminhos do viandante, ir por ruas que se fecham num enigma. Penetrar no mistério que se abre como uma avenida. Assim caminha, de mistério em mistério, de rua em rua, levado pelo vento que sopra onde quer.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Da viagem e da errância

Ferdinand Hodler - Ahasver, el judío errante (1910)

Distinguimos claramente viagem e errância. Na viagem, o viandante desloca-se de um lugar para outro, o ponto de partida e o ponto de chegada estão claramente definidos.Na errância, o vagabundo não tem destino, erra por aqui e por ali ao acaso. A clareza desta distinção, porém, é o sintoma da sua fragilidade. A errância é parte integrante da viagem. Quantas vezes aquele que julga saber de onde vem e para onde vai é um verdadeiro vagabundo? Quantas vezes o vagabundo descobre que partiu de um lugar e que um outro o espera? A isto poderíamos chamar uma meditação sobre o pecado.