domingo, 11 de janeiro de 2015

Cuidar o jardim

Raoul Dufy - O jardim abandonado (1913)

De um ponto de vista racional, pode-se sempre pensar que a ideia do paraíso, do jardim do Éden, foi construída à imagem e semelhança dos jardins que homem teria já inventado para seu deleite na terra. A imaginação, porém, pode, com o poder arquetípico que a constitui, dizer o contrário. Todos os jardins humanos são uma cópia ou uma reminiscência do paraíso, dessa experiência originária que habita o fundo da espécie humana. Ao dizer isto, a imaginação está ainda a dizer outra coisa. Tendo o homem sido expulso, o jardim foi abandonado. E esta ideia traz uma injunção para cada homem sobre a terra. A vida, no seu significado último, não deveria ser outra coisa do que a viagem de retorno. O jardim precisa de ser cuidado.

sábado, 10 de janeiro de 2015

Dentro do bosque

Ernst Ludwig Kirchner - Na orla do bosque (1920)

A vida dos homens decorre para além do bosque, no espaço civilizado sujeito às regras da sociabilidade humana. A vida espiritual, porém, implica um deixar a orla e adentrar-se no bosque, abandonando a sociedade e a civilização. Isso não significa a adopção de um estilo de vida incivilizado ou uma conduta insociável. Significa apenas que a vida do espírito se desenrola fora dos hábitos e das rotinas, no território onde, a cada momento, surge o inesperado que apela para o não pensado e o não dito.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Perder o norte

André Masson - Os pontos cardeais (1924)

Os pontos cardeais indicam-nos os sentidos fundamentais que podemos tomar na exploração do território. São um dispositivo de orientação na materialidade física do mundo. A viagem espiritual, porém, começa quando se abandona a segurança da orientação. No caminho para aquilo que chama o viandante, a rosa dos ventos ou a bússola não são dispositivos de ajuda. São entraves. A viagem começa quando os abandonamos e nos abrimos à solicitação trazida pelo acontecer. Há que perder o norte.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Uma nova inocência

Mère Geneviève Gallois - Adam et Eve chassés du paradis (1926)

Na narrativa de Adão e Eva, a expulsão do paraíso é vista como um castigo, um acontecimento negativo, algo que sucedeu devido à queda, à perda ingénua da inocência. Esta é, contudo, apenas uma parte da história. A expulsão do paraíso é o começo da viagem, a dolorosa procura de uma nova inocência, uma inocência que, abandonada a ingenuidade, se sabe e se quer inocente.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Poemas do Viandante (491)

Remedios Varo - Frío (1948)

491. os frios de janeiro erguem-se

os frios de janeiro erguem-se
sobre a terra

traçam ruas de gelo nos campos
abandonados

e semeiam a morte nos corações
baldios

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

A música

Henri Matisse - La Musique (1939)

De todas as artes, a música será aquela cuja natureza espiritual é mais decisiva. Na música já se abandonou a forma e a figura presentes nas artes plásticas, já se deixou para trás o discurso composto por unidades discretas, as palavras, que segmentam a realidade. Na música há o mais puro fluir, como ela fosse o primeiro eco da voz de Deus, o primeiro revestimento que o Logos divino toma para se revelar aos homens. A música é o cume da montanha ao qual todo o viandante aspira a chegar para, de lá, lançar a vista para o além.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

A estrela da tarde

William Turner - A estrela vespertina (c. 1830)

No regime existencial que pertence ao homem não há luz que não contenha em si um traço de escuridão, não há trevas que não sejam pontuadas pela luz. Não está dentro das condições de possibilidade do homem suportar o absoluto, seja o da luz ou o das trevas. Quando o sol se põe e as trevas ameaçam tomar conta do mundo, o brilho da estrela da tarde recorda-nos que, para nós, as trevas não são absolutas nem eternas. A luz é ainda um princípio de esperança que, nos momentos mais negros, guia a viagem espiritual do homem.

domingo, 4 de janeiro de 2015

Haikai do Viandante (217)

George Iness - Winter, Close of Day (1866)

dia de inverno
o sol resplandece na água
e tudo se cala

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

O frio invernoso

George Wesley Bellows - A Morning Snow - Hudson River (1910)

Nos ciclos da vida espiritual não é importante apenas a sua natureza cíclica, o facto de uma estação antecipar já a próxima, como se a vida fosse uma deriva em espiral. Em cada estação - como nas estações da via crucis - há que permanecer na natureza que a constitui e abrir-se à experiência a que ela convoca. Também o frio invernoso faz parte do caminho do viandante, nessa aproximação infinita à voz que o chama.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Dentro da cidade

Egon Schiele - Cidade amarela (1914)

O deserto inóspito, a floresta húmida e secreta ou a montanha agreste foram, desde há muito, lugares onde viandantes de todas as épocas procuraram o caminho para a sua viagem espiritual. Entendeu-se isso, muitas vezes, como fuga mundi, como uma forma de fuga aos negócios mundanos e à vida na cidade. Mas para o viandante dos dias de hoje o deserto, a floresta e a montanha encontra-se também dentro da própria cidade e é lá que a aventura espiritual, para a qual foi convocado, terá de realizar-se.