domingo, 30 de novembro de 2014

Poemas do Viandante (486)

Charles le Roux - Borde del bosque (1855)

486. as folhas mortas cantam

as folhas mortas cantam
no sopro do vento

velhos pássaros feridos
pela noite

um resto de pão ázimo
que há-de levedar

sábado, 29 de novembro de 2014

Do ciclo das estações

JCM - Heimat (2014)

Há uma aprendizagem central no ciclo das estações. O renascimento primaveril e a exuberância do Estio radicam na longa ascese que começa no Outono. Como as árvores, também o viandante começa a abandonar o peso das folhas mortas, para se despir de todas as ilusões. Sem o trânsito pelo escuro Inverno, é impossível aspirar pela chegada da luz .

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A memória da errância

JCM - Time on space (2007)

O tempo que se inscreve na pele, abrindo sulcos na planície do corpo, é um sinal - quase diria, uma memória - da errância que constitui parte substancial da viagem. Muitas vezes a luz que ilumina o espírito ausenta-se, coberta por uma nuvem. Então, o viandante perde-se no caminho, avança e recua, traça linhas sinuosas que não levam a lado nenhum. E tudo isso se inscreve nesse inusitado mapa que é a pele. Mais do que as vitórias, são os enganos, as ilusões e as derrotas que nos sulcam o corpo.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

À volta da linha

Wassily Kandinsky - À volta da linha (1943)

Podemos imaginar a viagem espiritual como um processo no qual seguimos uma certa linha, aquele recto caminho que nos foi dado. Essa imagem não sendo completamente ilusória é, todavia, incompleta. A viagem é também o esforço - há quem diga a ascese - de retornar da errância à volta da linha para o recto caminho, o qual e apesar de nos ter sido dado só existe nesse esforço criador que nos aproxima dele, inventando-o a cada aproximação.

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Haikai do Viandante (214)

JCM - Símbolos, signos e sinais (2007)

Mar de areia e sal
cobres o chão de sinais:
vens e logo vais.

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Do florescer

Kenneth Noland - Florescer (1960)

A viagem espiritual está longe de se deixar descrever pela metáfora dialéctica em da transformação do botão em flor, de um botão que contém em potência o flor em que se transformará. Devemos imaginá-la antes como uma outra forma de florescimento, no qual a flor se vai tornando, na viagem, cada vem mais naquilo que é, vai sendo cada vez mais flor.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A tempestade

Gustavo Torner - Como a tempestade (1959)

Temos medo de pensar em tempestades, não vá esse pensamento atraí-las. O caminho do viandante, porém, não está isento delas. Tarde ou cedo elas acabam por chegar para moldar o espírito e abrir uma via que, talvez sem se saber, estava fechada. Tudo o que acontece na viagem, tempestade ou bonança, faz parte da aprendizagem da via, queiramos ou não.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Poemas do Viandante (485)

Remedios Varo - Modernidad (1936)

485. estou exausto de tanta modernidade

estou exausto de tanta modernidade
e no passado não há como caminhar
tão pouco a glória do futuro me chama
para da nova era o nome anunciar

restam-me os dias com a sua sombra
e o velho sonho nunca sonhado
restam-me alguns devaneios
abertos sobre um oceano cansado

como eu queria ser não moderno
ter toda a luz na lenda e no mito
e ao acordar de manhã rezar
a oração que outro tivesse escrito

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Da multiplicidade das paisagens

Giorgio Morandi - Paisagem (1913)

Uma ilusão comum reside na convicção de que, na viagem, o viandante encontra múltiplas e diferentes paisagens, às quais, para sobreviver e prosseguir o caminho, terá de se adaptar. A ilusão não está na convicção da existência dessa multiplicidade, mas no facto de ela ocultar que o viandante traz em si, também ele, uma multiplicidade de paisagens que vai projectando no caminho, num jogo de revelação, no qual ele descobre aquilo que lhe pertence.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Um estranho sortilégio

Julián Momoitio Larrinaga - Ballet

Deixar o corpo elevar-se, suspender a gravidade, traçar um halo de beleza no espaço desolado do mundo. Quando as luzes se apagam e o movimento cessa,  os espíritos tornam-se corpo e o mundo acorda de um estranho sortilégio.