sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Poemas do Viandante (479)

JCM - Mitologias (a luz e as trevas) (2006)

479. deixar o outono destilar

deixar o outono destilar 
ao anoitecer

e cantar o destino avaro 
pelas ruas

deixar que o perfume desça
ao amanhecer

e as minhas mãos se abram
nas tuas

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Algumas questões cruciais

JCM - Black & White Dreams, Belmonte (2008)

Será o cristianismo, como pretende Nietzsche, uma forma de ressentimento e uma negação da vida? Esta pergunta tem outra como resposta. Como poderia uma religião negadora da vida criar a civilização com maior vitalidade e onde a vida foi mais exuberante na sua afirmação e nas suas realizações? E a esta pergunta duas outras se devem juntar. Como pôde um símbolo de morte, a cruz, tornar-se semente de vida, criatividade e realização existencial plena? Como compreender, com a diminuição do influência do cristianismo e da perda de sentido simbólico da cruz para muitos ocidentais, e apesar do poderio e a riqueza actual das sociedades pós-cristãs, que estas sejam percebidas como estando em profunda crise e ameaçadas de morte?

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

A raiz luminosa

JCM - Raiz e Utopia (a descida da luz) (2007)

Muito facilmente se toma a raiz como o símbolo daquilo que liga o homem ao que é obscuro, à profundidade tenebrosa dos elementos telúricos, ao que se esconde e não se deve, em si mesmo, manifestar. Mas se as raízes do homem estiverem não nas trevas mas na luz, como compreender então a simbologia da raiz? A raiz será, nesse caso, a luz que desce para iluminar até aquilo que há de mais obscuro, será uma raiz luminosa.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Haikai do Viandante (207)

JCM - Mitologias (sea and sky) (2014)

entre mar e céu
a  manhã de nevoeiro
luz sombra e véu

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Do aparente improviso

Albert Bloch - Impromptu (1959)

Não, não é improviso aquilo que, na viagem, pode ter essa aparência, por ausência de planeamento prévio. Não se trata de responder às solicitações do caminho, da vida, ao acaso ou de forma casuística. Aquilo que tem a aparência de um improviso, como um impromptu musical, não é mais do que a expressão da mais funda liberdade do viandante, daquilo que, através dessa liberdade, necessariamente se exprime. Em todo o aparente improviso, devemos aprender a ler a expressão de uma ordem que antecede e supera as pequenas ordens que o pobre planeamento humano traz consigo.

domingo, 5 de outubro de 2014

Signo sinal 6. No mais inesperado dos lugares

Ana Peters - Azul Prusi (1993)

Múltiplos são os matizes que se abrem na viagem. Aquilo que aos olhos do turista se mostra como insuportável uniformidade, o viandante vê-o com inúmeros cambiantes. A este não lhe interessa o pitoresco ou a descoberta de culturas diferentes, essa frouxa justificação para dar vazão ao medo da monotonia. A viagem é a própria vida em busca das raízes do ser, em busca da palavra que chamou o viandante à existência. Por isso, o olhar deste, ao contrário do turista, é profundo e demorado. Um sinal pode ser encontrado no mais inesperado dos lugares.

sábado, 4 de outubro de 2014

Poemas do Viandante (478)

JCM - Mitologias (tempo de Outono) (2007)

478. chegaram os dias de penumbra

chegaram os dias de penumbra
sob os plátanos

sentados no jardim aguardamos
o cair da noite

ouvindo pássaros e folhas secas
o sussurro do vento

escutando a voz do coração
no rumor do bosque

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

A extravagância do acontecer

JCM - Time on space. Porto Batel (2008)

Quantas vezes se pensa que a vida não passa de um amontoado extravagante de acontecimentos, fruto do acaso e do cego desejo. O viandante, porém, deve aprender a afinar o olhar e a observar nexos e configurações onde elas não são visíveis. Isso significa elevar-se para poder abarcar num relance aquilo que em baixo é imperceptível. A extravagância do acontecer revela-se-lhe então em fulgurações plenas de sentido.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

A fenda

JCM - Mitologias (a fenda) (2007)

Pensa-se muitas vezes a fenda como  manifestação da entropia de um determinado sistema, digamos assim. Diz-se que se abriram fendas em qualquer coisa e entende-se que esse acontecimento contém uma ameaça. Mas, como em tudo aquilo que contém um excessivo poder simbólico, ela representa também uma abertura para uma outra luz, uma outra realidade. E estas duas faces, a do perigo que espreita e da luz que  chama, estão plenamente presentes quando se convoca a fenda para simbolizar o perigo de derrocada ou o início da iluminação.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Ser de todos os lugares

JCM - Mitologias (com vista para o mar) (2014)

A solidez do mundo, a sua estrutura e organização são frágeis e impotentes perante o contínuo crescimento da entropia. De um momento para o outro, tudo começa a dissolver-se e a precipitar-se na água, liquefazendo-se. Mesmo que seja alguém da terra, o viandante deve aprender não a nadar mas a tornar-se água. O seu destino é tornar-se água na água, terra na terra, ar no ar e fogo no fogo, pois ele não pertence a lado nenhum e, por isso, é de todos os lugares.