quarta-feira, 10 de setembro de 2014

O abandono da ilusão

Pierre Puvis de Chevannes - O pobre pescador (1881)

Felizes vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus. (Lucas, 6:20)

Numa sociedade como a nossa, movida pela dinâmica da riqueza e da pobreza materiais, perdeu-se há muito a capacidade de compreender a pobreza - a pobreza evangélica - como despojamento. Pobre, neste sentido, não é aquele que vive na indigência, mas aquele que compreendeu que os bens materiais são uma ilusão e que optou pela frugalidade e o abandono da ilusão. Ser pobre significa abandonar toda e qualquer ilusão. E essa é a condição da plenitude, daquilo que Lucas nomeia como Reino de Deus.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Haikai do Viandante (203)

JCM - My foolish world (2007)

vermelho e negro
cobrem de folhas a terra
a vida e o desejo

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Bóia de salvação

JCM - Raiz e Utopia (bóia de salvação) (2014)

Talvez a aprendizagem mais difícil a fazer seja a de que não há bóia de salvação que permita ao homem salvar aquilo que ele anseia salvar. E esta inexistência não se deve à avareza da natureza ou a um particular descuido da divindade. Não há porque aquilo que o homem sonha salvar é nada, uma inexistência, a quimera a que, em desespero, se agarra.

domingo, 7 de setembro de 2014

Um sinal de eternidade

JCM - Still-life (2014)

No conceito de still-life (natureza morta) é essencial pensar não o modo estético de composição de um certo objecto artístico mas aquilo que se revela através de uma natureza morta, a suspensão do movimento e a abolição da temporalidade. Uma natureza morta está longe, então, de ser uma manifestação daquilo que está morto, do inanimado. É antes um sinal do que está para lá do tempo e, por isso, não se deixa captar pela armadilha física da cinemática. Uma natureza morta, ao fixar definitivamente uma hora, dirige o seu dedo indicador para a eternidade.

sábado, 6 de setembro de 2014

Poemas do Viandante (473)

JCM - Mitologias (ó mar salgado...) (2014)

473. deixa que o mar te chegue pela janela

deixa que o mar te chegue pela janela
e traga uma onda de luz

espera que no sal da água venham
os restos de uma caravela

senta-te no frio rumorejo da areia
e conta as aves que passam

e se no céu uma nuvem ensombrar a luz
confia na palavra que te incendeia

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Vencer a escuridão

JCM - Black & White Dreams (2014)

Raramente o homem compreende que está envolto pela escuridão mais tenebrosa. Na verdade, a viagem espiritual não é outra coisa senão a luta contra essas trevas, o exercício de abrir pequenos rasgões na cortina pelos quais a luz possa penetrar e iluminar - por pouco que seja, e é sempre tão pouco - o homem na sua falível humanidade. ´Que fazer? Vencer a escuridão.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A ascese do jardineiro

JCM - Heimat I. TN (2007)

As analogias trazem sempre um perigo. Por exemplo, podemos dizer: a vida do espírito é como um jardim. O perigo reside em perceber a vida espiritual como algo organizado e cosmético, como são os jardins aos olhos daqueles que fruem deles. A verdade da analogia, porém, reside noutro lado. Todo o jardim é uma viagem dura e trabalhosa em que a tendência para o caos e a força do espontâneo são substituídos por um mundo organizado e ordenado a um fim. E sempre que a força natural e a espontaneidade caótica se manifestam, o que preserva e faz perseverar o jardim na sua condição é a ascese do jardineiro, cortando aqui, podando acolá, limpando mais à frente, regando o que clama água. A vida espiritual a que o viandante - quem quer que ele seja - é chamado não é outra senão a da ascese do jardineiro.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Castanheiros em flor

JCM - Mitologias (castanheiros em flor) (2007)

São efémeras as florações, mas trazem nelas a promessa de um novo florir. Uma ilusão seria pensar que cada novo florescimento é a pura repetição do anterior, num ciclo de eterno retorno do mesmo. Também o viandante, na viagem que é a vida, floresce uma e outra vez. Mas, como o castanheiro em flor, a cada novo florir ele dá um passo em frente no caminho para o segredo que transporta consigo.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Poemas do Viandante (472)

Ricardo Asensio - Atardecer (1968)

472. o fumo espesso da tarde inclina-se

o fumo espesso da tarde inclina-se
ao sopro do vento

e tudo se cobre de sombras
e silêncios de água

das janelas avisto ainda um resto
da tua infância

mas a noite desce já pela colina
e chama por mim

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Um texto indecifrado

JCM - Time on space. Baleal (2007)

Estranhas caligrafias deixa o tempo na rocha. Alfabetos por decifrar enviam-nos notícias do mundo, talvez alguma indicação sobre o sentido da viagem. Não, não é aos geólogos que estes textos se dirigem, mas aquele que, na sua ignorância, sabe que um texto indecifrado, o da sua vida, se esconde ali.