domingo, 31 de agosto de 2014

Usar grades

JCM - Mitologias (uma casa portuguesa) (2014)

Os homens usam grades não por medo do que possa vir de fora e tomar de assalto o interior do seu próprio ser. Pelo contrário, o uso de grades reflecte o medo de sair de si, de se abrir à experiência do mundo, o temor de, ao sair de si, retorne feito outro. O medo da alteridade leva o homem a gradear a sua vida, não compreendendo que a sua própria identidade e a verdade desta implicam sempre a abertura ao outro.

sábado, 30 de agosto de 2014

Da pintura abstracta

Lee Krasner - Abstract #2 (1946-1948)

O viandante interroga-se muitas vezes sobre o papel da pintura abstracta no desenvolvimento espiritual da humanidade. Não é uma interrogação sobre pintura ou sequer sobre estética. Trata-se antes de uma questão ontológica. Que potências ocultas essa pintura desoculta e traz à luz do dia? Só uma visão ingénua da pintura poderia afirmar que aquilo que está num quadro nada tem a ver com a realidade. A libertação desses planos do real têm que finalidade? A mera expressão de um caos que se libertou da ordem para que o cosmos se dissolva ou é a solicitação para que o espírito apreenda essa desordem originária e encontre um caminho para configurar uma nova ordem?

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Poemas do Viandante (471)

JCM - Chemin qui ne mènent nulle part III (2014)

471. não sei de que beleza falar

não sei de que beleza falar
nestes dias de seca

esgotei o musgo e o veludo
de cada palavra

entreguei à cobiça do tempo
o que era sublime

resta-me as mãos vazias e um rio
afluente do silêncio

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Haikai do Viandante (202)

JCM - Time on space (Baleal) (2007)

secreta passagem
na dura pedra esculpida
desejo e voragem

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Signo sinal 5. Sinais de luta

JCM - Time on space. Baleal (2007)

Se a alma dos homens fosse visível como uma rocha, também nela avistaríamos múltiplos sulcos, impressões deixadas pelo tempo e pelas diversas experiências que a vida traz consigo. Nem sempre esses sulcos atravessarão planícies férteis ou vales amenos. Muitas vezes rasgam as encostas mais escarpadas. São então sinais de uma dura luta contra o que é fácil e cómodo. São rugas deixadas pelo crescimento da vida do espírito.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Poemas do Viandante (470)

JCM - Speculum III (2014)

470. embriagado volta o sonho

embriagado volta o sonho
na fímbria da manhã

um velho cais traçado a carvão
pela mão do deus

e na água sonâmbula 
um olhar sombrio

o teu coração marejado de luz
e súbitas lágrimas

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

Da distribuição da dádiva

JCM - Raiz e Utopia (os trabalhos e os dias) (2014)

O viandante não tem sítio onde guardar aquilo que colhe, pois guardar o que recebe é dissipar a dádiva. Tudo o que transporta consigo é dádiva gratuita, dádiva que pede para ser distribuída, uma e outra vez, como se quanto mais distribuísse mais houvesse para distribuir. Aquele que retém o recebido acumula não o bem mas a dívida, que será tanto maior quanto mais a dádiva for retida.

domingo, 24 de agosto de 2014

Abrir o portão

JCM - Chemins qui ne mènent nulle part II. Vidago (2014)

O mistério da vida está todo contido nesse cadeado que fecha o portão que nos permite aceder à ponte e, por ela, à outra margem. Se a vida é uma viagem, esta não é mais do que a travessia de uma para outra margem. De aqui para além. O difícil, contudo, está em descobrir o segredo que permite abrir o portão que veda a passagem.

sábado, 23 de agosto de 2014

A luz e as trevas

JCM - Mitologias (Sonho numa noite de Verão) (2014)

O tema da luz assedia a imaginação do homem de tal maneira que nunca estará esgotado. Sempre novas configurações do tema virão adicionar-se às anteriores, projectando novos clarões sobre as densas trevas. Seja a luz natural da razão que a modernidade e o iluminismo incensaram ou a luz sobrenatural vinda de não se sabe que primórdios, a verdade é que a luz parece ter apenas um parco poder, o de abrir uma clareira nas escarpas da escuridão. E isso tem sido o suficiente para o infinito trabalho da imaginação sobre a eterna luta entre a luz e as trevas. 

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Poemas do Viandante (469)

Ilse Bing - Chairs with Leaves, Luxembourg Gardens, Paris (1952)

469. o silêncio preenchido

o silêncio preenchido
de folhas mortas

a luz vítrea magoada
pela tua ausência

o banco abandonado
na memória

assim declinam os dias
na clareira do verão