domingo, 10 de agosto de 2014

Da necessidade de mitologias

JCM - Mitologias (animais totémicos)  (2014)

A vida dos homens é uma longa colecção de mitologias, um exercício contínuo de mitificações, uma produção ininterrupta de mitos. Com a experiência trazida pela modernidade e pelo iluminismo sabemos que entre o mitificar e o mistificar o passo é curto, demasiado curto. Assim informados, por que razão insistimos no trabalho do mito? Não seria mais curial entregar tudo à guarda da ciência empírica? Isso seria verdade se não pressentíssemos que uma outra verdade exige um outro acesso. A nossa disposição para as mitologias reflecte não o amor dos homens às ilusões e às quimeras, mas o seu fundo compromisso com a verdade, com uma outra verdade que escapa à ciência e nos chama de longe.

sábado, 9 de agosto de 2014

Haikai do Viandante (199)

JCM - Raiz e Utopia (o eterno retorno) (2014)

este mar secreto
abre-se de onda em onda
um sonho desperto

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O desejo e a moral

Edward Burne Jones - A manhã da Ressurreição (1882)

Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. (Mateus 16:24)

Funda-se o Cristianismo em preceitos morais? Não, eles não são o fundamento da religião que tomou conta da Europa e de uma parte apreciável do mundo. Onde se funda então o Cristianismo? Funda-se no desejo, como refere Mateus: Se alguém quiser vir comigo... Os preceitos morais inscrevem-se num lugar segundo e são inúteis se a faculdade de desejar não estiver mobilizada. Apesar de secundários, esses preceitos são condição necessária. Dois preceitos são indicados por Mateus. A renúncia a si mesmo e o tomar a sua cruz. Através deles o desejo é canalizado - enquanto amor - para o caminho a seguir. E todo o Cristianismo não é outra coisa senão isto.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Pensamento humano

JCM - Auto-retrato VII (2014)

Tu és para mim um estorvo, porque os teus pensamento não são os de Deus, mas os dos homens. (Mateus 16:23)

Que bagagens deve o viandante deixar para trás para que a viagem possa prosseguir? Em primeiro lugar, antes de toda a outra mercadoria, deve abandonar os seus próprios pensamentos, as suas considerações sobre si, sobre o mundo ou sobre a própria viagem que é chamado a fazer. Tornar-se pobre em espírito não é outra coisa senão deixar para trás esses pensamentos, que são humanos, demasiado humanos. Isto é, limitados, finitos, retrato do egoísmo próprio. Só assim um outro pensamento se poderá manifestar.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Poemas do Viandante (467)

Ferdinand Hodler - Desnudo tumbado con flor (1888)

467. a flor luminosa solta-se

a flor luminosa solta-se
o tempo a perdeu

mas levada pelo vento
poisa na tua mão

e tudo se transfigura
na noite de breu

lua e trevas são agora
sol no coração

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Cegos e guias de cegos

JCM - Distopia (o olho do panóptico) (2014)

Deixai-os. São cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala. (Mateus 15:14)

É no contexto de uma discussão sobre o que é a tradição que surge esta resposta. Por que razão se diz que se está perante cegos e guias de cegos? Porque a tradição espiritual é reduzida à observância ritualista sem relação com a vida verdadeira. É a ausência de contacto com a vida do espírito que torna os homens cegos. E aqueles que os guiam são ainda cegos, talvez mais cegos, pois vendo não vêem a vida. Cuidam apenas de um sistema de observação - que hoje diríamos distópico - que permite controlar a observação exterior das regras rituais sem tocar naquilo que vivifica o homem, e lhe dá a possibilidade de passar da cegueira à visão.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Por que duvidaste?

Norman Narotzky - All life is there (1984)

E logo Jesus, estendendo a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste? (Mateus 14:31)

Esta pergunta - por que duvidaste? - fica sem resposta. Pedro não disse nada. Este silêncio, porém, é eloquente e dá que pensar. Situa-se no encontro conflitual entre fé e dúvida. Qual o significado do silêncio de Pedro? A finitude da sua humanidade indica que esse conflito é constitutivo do homem. Enquanto ser natural dotado de razão, o homem está cindido entre a crença absoluta e a dúvida. Pedro não respondeu pois a sua natureza era a resposta. Duvidar faz parte da condição humana. Para que apenas a fé mais pura brilhasse, seria necessário que Pedro, sendo humano, fosse mais do que um homem. E foi isto o que, por várias vezes e em diferentes circunstâncias, lhe foi pedido.

domingo, 3 de agosto de 2014

A cura dos enfermos

Pablo Picasso - La malade

E, Jesus, saindo, viu uma grande multidão, e possuído de íntima compaixão para com ela, curou os seus enfermos. (Mateus 14,14)

Duas perplexidades surgem ao leitor perante este texto de Mateus. A primeira leva-o a perguntar: por que razão uma grande multidão leva ao desencadear da compaixão, de uma íntima compaixão? A segunda diz respeito aos enfermos que nela estavam e que foram curados. Quem são eles, esses enfermos? A primeira perplexidade encontra resposta no versículo anterior. Essa grande multidão é composta por aqueles que O seguiram desde as cidades. A compaixão denota a compreensão do esforço - da ascese - que representa seguir o Mestre. Segui-Lo emerge, deste modo, como um processo contra-natura, um exercício que exige sacrifício. Mas quem são os enfermos? São aqueles que, mesmo ao segui-Lo, caem na errância, perdem o alvo. Fazem o caminho mas não sabem o sentido desse caminho. Reproduzem o gesto ritual, mas este é já destituído de verdadeira vida. Por isso é dito que estão doentes. São esses os enfermos que a compaixão leva à cura, isto é, à revelação do sentido do caminho que estão a fazer.

sábado, 2 de agosto de 2014

Folhas mortas

JCM - Folhas mortas (2014)

Exaustas, as folhas entregam-se à morte. Não porque a morte tenha triunfado, mas para que a vida volte de novo e, na exuberância e frescura do verde, se torne símbolo que oriente o viandante no caminho. Sempre que este se depara com folhas mortas é a vida plena e triunfante que espera.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

O verdor da vida

JCM - Viriditas (2007)

Terra viriditatem sudat. (Hildegard von Bingen, Symphonia armonie celestium revelationum)

Viriditas pode ser traduzido por verdor, a qualidade daquilo que é verde. O termo designa um dos conceitos centrais da mística de Hildegard von Bingen. Designa a qualidade daquilo que é saudável e, por isso, é verde, fresco. Esta saúde refere-se tanto ao domínio físico como ao espiritual. Pode ser entendida como um equilíbrio, mas um equilíbrio que resulta da escuta da Palavra, como se a vida, no verdor que a mostra como saudável, apenas do Logos pudesse provir.